Tuesday, December 04, 2007

Image Hosted by ImageShack.us

I'm Not There, Não Estou Aí, é o filme de Todd Haynes sobre Bob Dylan que divide opiniões entre quem ama e quem odeia. Ou quem, como eu, ama e odeia ao mesmo tempo. Tremendamente irritante e apaixonante. Adoro Bob Dylan, e ouvir as canções dele por duas horas é um prazer, mesmo que o filme seja longo demais - daria para cortar pelo menos meia hora sem perder nada.
Pra nós, que conhecemos Fernando Pessoa e seus heterônimos, a premissa do filme não tem nada de novo. Em vez de um Bob Dyan, são seis, cada um com seu nome, personalidade, e pouco a ver com o original.

Marcus Carl Franklin

O primeiro é pra mim o melhor do filme, o menino negro que diz se chamar Woody Guthrie e faz de conta que vive nos anos 30, como o verdadeiro Woody, pegando carona em trens e cantando folk songs. O ator, Marcus Carl Franklin, no primeiro trabalho dele no cinema, é maravilhoso. E o menino canta e toca violão muito bem.
When the ship comes in (Bob Dylan), Marcus Carl Franklin
Pena que Marcus só apareça na primeira metade do filme, antes de sumir sem explicação. Este é um dos maiores problemas (e são muitos). O roteiro de Haynes não consegue explorar bem a idéia dos heterônimos de Bob Dylan, alguns ótimos, outros ridículos, e se perde sem que os pedaços do quebra-cabeças cheguem a fazer sentido.
Um dos problemas é que o filme se dedica a contar a vida de cada heterônimo, raramente tão interessante quanto a de Dylan.


Wishaw, Ledger, Bale, Gere, Franklin, Blanchett.

São seis: o menino Woody, que é o Dylan garoto, se fazendo passar por herdeiro do grande Woody Guthrie; o cantor Jack Rollins (Christian Bale, ótimo), o Dylan que conquista Greenwich Village e o amor da estrela da folk music Joan Baez (interpretada com muito sarcasmo por Julianne Moore) e depois vira evangélico; o ator de cinema Robbie Clark (Heath Ledger, totalmente perdido), um Dylan na intimidade, em crise conjugal com a mulher (a francesa Charlotte Ginsburg, ainda mais perdida); Arthur Rimbaud (Ben Wishaw, muito bem num papel desperdiçado), Dylan como poeta maldito; Billy the Kid (Richard Gere, horrível), um Dylan fora-da-lei num faroeste mítico (Dylan fez uma ponta e a trilha sonora no filme Pat Garrett and Billy the Kid de Sam Peckinpah); e Jude Quinn (Cate Blanchett, divina como sempre), o Dylan que abandona a folk music para se tornar rock star.
O filme cresce muito, lá pela metade, quando Cate Blanchett finalmente aparece, incrivelmente parecida com Dylan aos 23 anos, numa refilmagem em preto-e-branco do documentário Don't Look Back, o clásico de D.A. Pennebaker sobre a tournée de Dylan na Inglaterra em 1965. Michelle Williams faz com brilho o papel de Marianne Faithfull, assim como David Cross o de Allen Ginsberg. O canadense Bruce Greenwood quase rouba o filme como o jornalista que entrevista Dylan (o elenco é gigantesco).
Dá pra ver que o filme é um caos. E não há nada, além da música de Dylan, para juntar os cacos. Pode ser descrito como um sonho ou um pesadelo (uma bad trip de ácido, das longas).
O que derruba o projeto é que essa divisão de Dylan em heterônimos passa de arbitrária. Não corresponde à obra dele, ao contrário dos heterônimos de Pessoa, cada um com seu estilo bem definido. Dylan sempre foi e continua sendo um artista de múltiplas facetas, mas elas coexistem na vida dele e nas canções. A separação em personagens diferentes não faz nenhum sentido.



O pior é o longo e tolo episódio de Richard Gere como um patético Billy the Kid, num parque de diversões do velho oeste. Tão ruim quanto a interminável crise conjugal entre Heath Ledger e Charlotte Gainsburg, que Haynes diz ter baseado no casamento de Dylan com sua primeira mulher, Sara Lownds.
Fica óbvio o motivo pelo qual Dylan concordou com o projeto de Todd Haynes. Ele sempre resistiu a ser rotulado, desde a época de folk singer, e conseguiu manter a vida pessoal e a família longe da curiosidade do público. Dylan construiu com muita competência uma aura de mistério, de artista que escapa a definições e retratos simplistas. Este filme torna Dylan ainda mais enigmático e impossível de classificar. Explode o mito sem revelar o que pode estar por trás, ou por dentro. O título é perfeito, Não Estou Aí, para descrever um filme no qual o artista retratado está ausente. Exatamente como Dylan deseja. O mistério continua.
Pra quem se contenta com a obra de Bob Dylan, pura e simples, o melhor ainda é o documentário No Direction Home, de Martin Scorcese.

Monday, December 03, 2007

O Escafandro e a Borboleta


Só agora estreou aqui O Escafandro e a Borboleta, o filme francês do pintor novaiorquino Julian Schnabel, em cartaz no Brasil desde outubro. Está cotado para o Oscar e merece (Schnabel levou Melhor Diretor em Cannes, foto no fim deste post).
Não li o livro do jornalista Jean-Dominique Bauby (foto abaixo), editor-chefe da revista Elle, publicado em 1997 e traduzido com sucesso no Brasil, e agora quero ler. Ele ficou paralisado depois de um derrame, com uma síndrome chamada locked-in, ou seja, trancado dentro. A pessoa permanece consciente mas sem qualquer atividade muscular voluntária, presa no próprio corpo. Paralisado, Jean-Dominique não fala mas movimenta a pálpebra esquerda (a direita foi costurada porque o olho poderia infeccionar). Com a ajuda de uma terapeuta da fala, ele aprende a piscar o olho para ditar letra a letra, um processo demorado e exasperante, e assim ele consegue ditar o livro.
Jean-Dominique Bauby ditando O Escafandro e a Borboleta

Contado desse jeito, parece um filme deprimente. Mas não é. Schnabel faz da camera o olho de Jean-Dominique. A gente vê o que ele vê, por esse único olho. Quando ele chora a camera fica embaçada. A gente ouve a voz de Jean-Dominique, mas é só o pensamento dele. As pessoas que estão em volta, que aparecem diante do olho, não sabem o que ele pensa. Aos poucos, piscando - e a camera também pisca - ele consegue se comunicar com as terapeutas, a ex-mulher, os filhos, os amigos. Não sai do hospital da Marinha, situado numa cidade de praia e especializado em reabilitação. Mas descobre a liberdade na memória e na imaginação.
Schnabel encena os sonhos, devaneios e fantasias de Jean-Dominique, imagens que o mantêm vivo. Nos outros filmes dele, Basquiat e Antes que Anoiteça , Schnabel mostrou seu estilo visual mais ligado à pintura do que ao cinema contemporâneo. Não tem nada a ver com os efeitos especiais de Hollywood. Lembra às vezes Glauber Rocha e o cinema dos anos 60, ou o cinema surrealista de Jean Cocteau. Mas nada é gratuito ou experimental. Suas imagens surpreendentes são vitais para a história de Jean-Dominique, são a expressão visual dos textos que ele dita ao longo do filme.
Tive um médico que recomendava como tratamento para depressão visitar doentes terminais no hospital. Segundo ele, nada como a desgraça alheia para alegrar a gente. Ainda bem que me livrei dele a tempo. O filme de Julian Schnabel é ótimo para curar depressão, mas não por esse motivo torpe. É que para não sucumbir ao escafandro (a prisão dentro do próprio corpo), Jean-Dominique voa com os borboletas da memória, da imaginação e da fala - mesmo sem voz. A voz, a fala, transcendem o corpo. Basta uma pálpebra para falar e escrever.
Numa das melhores cenas do filme, a logoterapeuta Henriette (a maravilhosa atriz Marie-Josée Croze, foto abaixo) anota as primeiras letras ditadas por Jean-Dominique e compõe a frase dele: "Quero morrer". Ela se rebela, não aceita que ele se entregue, não lhe dá esse direito. Nós estamos vendo a cena pelo olho de Jean-Dominique e é incrível como ele reage, exatamente como nós, diante da avalanche emocional de Henriette.
O que salva Jean-Dominique é a decisão que ele toma a partir daí: não vai mais sentir pena de si mesmo. Se fazer de vítima seria fatal.
Marie-Josée Croze no papel de Henriette

O humor de Jean-Dominique, a graça que ele vê nas mínimas coisas, sobretudo no próprio sofrimento físico ("Limpam o meu bumbum como o de um bebê"), é uma experiência comum vivida pelas pessoas em situações extremas, diante da morte. E o roteiro de Schnabel permite que esses momentos de grande humor surjam naturalmente, o que faz desse filme um dos mais alegres e otimistas que vi nos últimos tempos. Um exemplo: dois homens da companhia telefônica vêm instalar um telefone pedido por Jean-Dominque para se comunicar com a família. Eles se surpreendem ao ver que o paciente não pode falar e um deles não resiste, pergunta se ele é daqueles tarados que gostam de dar trotes arfando ao telefone. A acompanhante fica indignada com a falta de respeito. Mas Jean-Dominique, em silêncio, dá gargalhadas. E nós, que ouvimos o pensamento dele, rimos junto.
O ator Mathieu Amalric (foto abaixo), que foi o ótimo Louis do filme Munique de Spielberg, é um achado como Jean-Dominique. O papel seria do grande Johnny Depp, que acabou deixando Schnabel na mão para filmar Os Piratas do Caribe III. Não fez falta. A leveza e a irreverência de Amalric, com cara de menino encapetado, são perfeitas para o personagem. Uma das características de Jean-Dominique é a irreligiosidade ("Milagres não!", ele implora quando todo mundo começa a rezar em volta dele). Outra, a paixão pelas mulheres ("Essas gatas dando sopa e eu aqui paralítico!"). E ainda, o amor pelos três filhos pequenos, que o visitam mas com quem não pode mais brincar. Há também a reconcilicação com o pai (o genial Max von Sidow), uma figura distante e autocentrada, que finalmente tenta se aproximar do filho. Sem pieguice nem chavões, em poucas pinceladas Schnabel constrói o protagonista como um sujeito decente, gostável. É bom estar dentro da cabeça dele, vendo o mundo por aquele olho.
Mathieu Amalric

Uma das graças do filme é ver como os médicos e as pessoas em geral tratam o doente indefeso (no caso, totalmente, pois sequer pode falar), visto como criança, incompetente, totalmente passivo. Os médicos dizem a Jean-Dominique como ele deve estar se sentindo péssimo (ele agradece), falam barbaridades, e as pessoas em volta tendem a tratá-lo como se ele não estivesse presente. É como os bebês e os velhos são tratados, como se não tivessem vontade própria, não são pessoas. É incrível estar na pele de Jean-Dominique, dentro da cabeça dele, e ver como essas coisas acontecem, sem que ninguém se dê conta, a não ser a vítima. É extraordinário. Ele está vendo um jogo de futebol na TV, torcendo por um gol que não vem, quando o enfermeiro entra, apaga a TV e sai. Não tem conversa, nem piedade. O mundo é assim. São esses detalhes do cotidiano que fazem do filme um relato comicamente e dolorosamente real. Como a vida.
Julian Schnabel recebendo o prêmio de melhor diretor em Cannes

O filme já entrou em muitas listas de favoritos para o Oscar mas há quem diga que não pode concorrer por ser uma produção americana (ou franco-americana) falada em francês. A França escolheu outro filme, o longa de animação Persépolis, para concorrer ao Oscar de melhor filme em língua estrangeira. Mesmo que não concorra a melhor filme, podem sair indicações para melhor diretor (Schnabel), melhor ator (Mathieu Amalric), melhor roteiro (Ronald Harwood, O Pianista)e Janusz Kaminski (o diretor de fotografia de muitos filmes de Spielberg).

Sunday, December 02, 2007

Bryn Terfel
Anja Harteros

A Metropolitan Opera está com uma temporada brilhante. Vi ontem Le Nozze de Figaro. Não é minha ópera de Mozart preferida (prefiro Die Zauberflöte e Don Giovanni) mas chega perto. A montagem do Met é do grande diretor inglês Sir Jonathan Miller (foto abaixo). Cruzei com ele aqui há alguns anos quando estava preparando essa mise-en-scène e Miller me disse que Le Nozze é a favorita dele. Miller é um verdadeiro Rennaissance man, além de um dos maiores diretores de teatro e ópera da atualidade, destacado defensor do ateísmo (com uma série de TV na BBC), e respeitado psiquiatra, além de humorista, escultor, e que sei mais. Um gênio do nosso tempo.
Como todas as produções de Miller, esta é límpida, tradicional, sem as interpretações grotescas que muitos diretores contemporâneos gostam de impor aos clássicos, desfigurando-os.
Esta montagem (foi a última apresentação nesta temporada) trouxe Bryn Terfel (foto acima) como Fígaro, e Anja Harteros (idem) como a Condessa, ambos excepcionais. Muito bons também Simon Keenlyside como o Conde e Ekaterina Siurina como Susanna. O maestro, Philippe Jordan, é o novo diretor da Ópera de Paris. Noite inesquecível.
Quando Harteros cantou a grande ária Dove Sono, o Met veio abaixo. Segue a interpretação de Margaret Price de 1987.

Dove Sono, Margaret Price

Jonathan Miller

Saturday, December 01, 2007

Gustavo Dudamel

Gustavo Dudamel

Fui ver a nova sensação da música clássica, o maestro venezuelano Gustavo Dudamel, 26 anos, regendo pela primeira vez a New York Philarmonic. Ele arrasou. Levantou o astral de todo mundo, orquestra e público, aplaudido de pé aos gritos de Bravo!
Lavou a alma.
Coisa inédita, a orquestra deixou que ele usasse uma das batutas de Leonard Bernstein. Quando Gustavo tinha quatro anos, no interior da Venezuela, brincava de ser maestro e regia os brinquedos dele ao som de gravações de Bernstein.
Em 2009, Dudamel vai assumir a Filarmônica de Los Angeles. Atualmente ele rege uma orquestra sueca e a Orquestra Jovem Simon Bolivar em Caracas.
Ele é a jóia da coroa de uma das mais fabulosas experiências educacionais do mundo, o Sistema de Educação Musical da Venezuela, criado pelo maestro e economista José Antonio Abreu em 1975. Hoje, graças ao apoio do governo Chavez, o sistema atende a 250 mil estudantes de música, que ganham do estado seus instrumentos e eduçação gratuita e tocam em 125 orquestras, das quais 30 são profissionais. São na maioria (90%) crianças pobres, meninos de rua, delinquentes que em países como o Brasil estariam na Febem ou na rua. A orquestra Simon Bolivar esteve recentemente no Carnegie Hall, trazida pela Filarmônica de Berlim, regida por Gustavo, e deslumbrou público e crítica. Não fica nada a dever às melhores orquestras do mundo.
Ver Gustavo Dudamel reger é um prazer. A alegria e o entusiasmo dele são contagiantes. Tive a sorte de conseguir um lugar lateral perto da orquestra e pude ver as mãos e o rosto dele. Sei que é clichê mas não resisto: é um maestro que vive a música que rege. Ele "toca" a orquestra como um instrumento, com gestos precisos, de uma variedade e uma beleza impressionantes. E a batuta de Lenny Bernstein na mão dele flutuava, dançava sobre a orquestra. No fim, enquanto o público aplaudia de pé sem parar, Gustavo entrou pela orquestra cumprimentando os músicos um a um. Nunca vi isso antes.
Para completar, a pièce de résistance do concerto foi minha sinfonia favorita, a Quinta de Prokofiev. É o ponto máximo da música no século XX. Profundamente otimista, alegre, grandiosa. Escrita no fim da Segunda Guerra, quando os soviéticos deram a virada que derrotou o nazismo, é a sinfonia da vitória, embora tenha estreado poucos meses antes do fim dos combates na Europa.
A interpretação de Dudamel é como a de Bernstein, perfeita, empolgante, e dava vontade de aplaudir a cada movimento, como faziam antigamente (agora não é mais de bom tom). É a expressão em música daquilo que a União Soviética, apesar de Stalin, simbolizou por muito tempo: um futuro heróico, fraternal, cheio de esperança e alegria.
Aí vai, na versão de Seiji Ozawa com a Filarmônica de Berlim, o segundo movimento, Allegro Marcato:

Prokofiev, Sinfonia n. 5, Allegro Marcato