Saturday, December 31, 2005



FELIZ ANO NOVO!

Aí vai a receita de cotechino com lentilhas da mestra Marcella Hazan que estou fazendo para amanhã. Na Itália dizem que comer cotechino com lentilhas no primeiro dia do ano traz dinheiro. As lentilhas têm a forma de moedas e o cotechino, cortado em rodelas finas, também. Cotechino é um embutido de carne de porco fresca da cidade de Modena, com oito centímetros de diâmetro e 20cm de comprimento. Há variações com os nomes de zampone e musetto.
O cotechino tem uma consistência quase cremosa e muito suave.
No Brasil é difícil achar o cotechino fresco. Em geral é vendido pré-cozido, em caixas. Esta receita é para o cotechino fresco.

Deixe o cotechino de molho de um dia para o outro. Enxugue e ponha numa panela com no mínimo três litros de água. Cozinhe em fogo brando, fervura leve, por duas horas e meia. É fundamental que a pele do cotechino não estoure, por isso é preciso manuseá-lo com o máximo de cuidado. Não encoste nele garfo ou nada cortante ou de ponta. (No caso do pré-cozido, ferva apenas 45 minutos, com os mesmos cuidados). Deixe o cotechino descansar no seu próprio líquido, uns 15 minutos. Retire, corte em rodelas de um centímetro de espessura e sirva ainda quente. Não deixe o cotechino fora do líquido para evitar que ele seque.
Para cozinhar as lentilhas, use um litro da água em que o cotechino está cozinhando, uma hora e meia depois de iniciado o cozimento (no caso do pré-cozido, vai ser necessário fazer isso com o cotechino pronto ao fim de 45 minutos, deixando que ele descanse no líquido para esquentá-lo na hora de servir).
Primeiro refogue uma colher de sopa de cebola picada no azeite, até dourar, e acrescente uma colher de sopa de aipo picado, refogando por mais dois minutos. Acrescente as lentilhas (lavadas e catadas previamente) mexa bem e cubra com a água fervendo onde o cotechino foi cozido. Tampe a panela e cozinhe em fervura baixa durante 30 a 40 minutos. Acrescente água de vez em quando para que as lentilhas estejam sempre cobertas. Quando as lentilhas começarem a amolecer deixe que elas absorvam todo o líquido, aumentando o fogo com a panela destampada. Acrescente sal e pimenta do reino.
Sirva as lentilhas numa travessa rasa cobertas com as rodelas de cotechino. Enfeite com salsinha.
E mais uma vez, FELIZ ANO NOVO!

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Thursday, December 29, 2005

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CREPÚSCULO EM NEW YORK
Vinicius de Moraes

Oito milhões de solitários
Fernando Sabino


Com um gesto fulgurante o Arcanjo Gabriel
Abre de par em par o pórtico do poente
Sobre New York. A gigantesca espada de ouro
A faiscar simetria, ei-lo que monta guarda
A Heavens, Incorporations. Do crepúsculo
Baixam serenamente as pontes levadiças
De U.S.A. Sun até a ilha de Manhattan.
Agora é tudo anúncio, irradiação, promessa
Da Divina Presença. No imo da matéria
Os átomos aquietam-se e cria-se o vazio
Em cada coração de bicho, coisa e gente.

E o silêncio se deixa assim, profundamente...

Mas súbito sobe do abismo um som crestado
De saxofone, e logo a atroz polifonia
De cordas e metais, síncopas, arreganhos
De jazz negro, vindos de Fifty Second Street.
New York acorda para a noite. Oito milhões
De solitários se dissolvem pelas ruas
Sem manhã. New York entrega-se.

Do páramo
Balizas celestiais põem-se a brotar, vibrantes
À frente da parada, enquanto anjos em nylon
As asas de alumínio, as coxas palpitantes
Fluem langues da Grande Porta diamantina.

Cai o câmbio da tarde. O Sublime Arquiteto
Satisfeito, do céu admira sua obra.
A maquete genial reflete em cada vidro
O olho meigo de Deus a dardejar ternuras.
Como é bela New York! Aço e concreto armado
A erguer sempre mais alto eternas estruturas!
Deus sorri complacente. New York é muito bela!
Apesar do East Side, e da mancha amarela
De China Town, e da mancha escura do Harlem
New York é muito bela!

As primeiras estrelas
Afinam na amplidão cantilenas singelas...
Mas Deus, que mudou muito, desde que enriqueceu
Liga a chave que acende a Broadway e apaga o céu
Pois às constelações que no espaço esparziu
Prefere hoje os ersätze sobre La Guardia Field.

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Monday, December 26, 2005

duende em greve

NATAL FIM DE NOITE
Anna Maria Ribeiro (publicado no Montblaat)

- Desculpa entrar assim, mas estou exausto!
- Cruzes! Você me assustou! Como entrou?
- Pela janela do escritório. Estava aberta! Uma imprudência!
- É, eu sei. Não tenho coragem de fechar na cara da mangueira. Ela não ia entender nada. Mangueiras não são atingidas pela violência que vai por aqui. Somos amigas, faz tempo. Por que veio?
- Já disse! Estou exausto. Preciso descansar um pouco antes de voltar. E posso aparecer para você, que ainda acredita.
- Ah! É verdade. Acredito, sim. Muitas crianças hoje? Daí o cansaço, não é?
- Crianças?! Faz tempo que não me ocupo delas.
- Não?!!! Como não? Ainda ontem vi nas Lojas Americanas...
- Ah! Os de mentira. Estes continuam. Seria cruel eliminá-los. Na verdade as crianças acreditam mais neles. Tiram fotos. Fica sendo verdade. Eu mesmo nunca fui fotografado. Não gosto. Saio sempre mal na foto.
- Mas se não é pelas crianças o que é que veio fazer? Ainda hoje à noite vi você no momento em que Maria Clara abria os presentes. É a única criança da família. As outras, insubordinadas, foram crescendo sem pedir licença.
- Percebi sua expressão no momento em que ela abriu os embrulhos.
- Ah! Você viu! Mas se não era por Maria Clara... Deu pra bisbilhotar agora?
- Foi bisbilhotando que me dei conta.
- De quê?
- Dos adultos. Estão quase todos precisando. Muito mais que os pequenos. De uns anos para cá me voltei para eles. As crianças, de um jeito ou de outro, sempre ganham alguma coisa. Os pais se viram. E como! É admirável o que fazem. E as obras de caridade acabam providenciando alguma coisa para as muito pobres. Mas os adultos...
- Não tenho visto o resultado desta sua atuação. A maioria das pessoas está mal. Não é de presentes que precisam.
- E eu não sei? O que faço é pouco. Mas nesta noite, fabrico um pouco de alegria. E até esperança de dias melhores. Por uma noite.
- Você é santo! Podia fazer muito mais.
- Há controvérsias. São Nicolau detesta este duplo papel. Não assume a dupla personalidade. Então faço o que posso, sem santidade mesmo. Afinal tenho as renas. Ninguém mais tem, por lá. Posso me locomover. É uma grande vantagem. Os outros não descem à terra. Recebem os pedidos, é claro. E até providenciam alguns. E dão resignação aos que não os vêem atendidos. Mas eu posso me fazer presente. A presença é importante.
- Lá isto é.
- E você? Como está indo? Um dos motivos que escolhi sua casa para descansar é que você nunca pede nada. Por que?
- Você não sabe? Estranho. Pensei que fosse mais informado.
- Seria. Se tivesse mais tempo. Mas a maioria precisa mais do que você. Então não me aprofundo pro seu lado. Mas diga: o que é que você quer?
- O que você pode me dar já tenho: alegria hoje e esperança no amanhã. Por isto acredito em você. Não dá pra sacar?
- Ah! Me dá um copo d’água?
- Claro! (...) Mas não prefere beber um vinho? Um whisky?
- Nunca bebo em serviço. Não chega ser um sacrifício. Só trabalho uma noite por ano.
- Durante o ano, não?! E a fábrica de brinquedos? Os duendes?
- Faliu. Tive que despedir todo mundo. Foi terrível. A quantidade de duendes desempregados é espantosa. Me sinto culpado. Mas fazer o quê?
- É. Sei como é. Por aqui também é grande o desemprego. Dizem que melhorou. Mas não sei... Tenho esperança que sim.
- Todos os dias agradeço por isto: você acredita mesmo em mim. Cada vez são em menor número os que acreditam. Tenho pavor de acabar sumindo.
- Fica assim, não! Olha, faz uma exceção hoje. Vamos tomar um bom vinho olhando a mangueira. Está linda!
- Sabe o que é mais? Você tá certa. Me deu ânimo, sabe? Salta lá este vinho! Sobrou um pouco da torta de bacalhau?

Sunday, December 25, 2005

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Feliz Natal! Clique aqui.
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Desejo um feliz Natal a todos. Aqui vai o bacalhau que fiz ontem para a ceia, o bacalhau que nunca chega. Quem me ensinou a fazê-lo foi o saudoso Cesar Thedim.
É fácil, rápido e rende muito. Ideal para festas.
As proporções: o mesmo peso de bacalhau e cebola, e a metade em batatas.
Para 30 comensais usei seis quilos de bacalhau, seis de cebola e três de batata. E uma dúzia de ovos.
Na véspera põe-se o bacalhau de molho, trocando a água pelo menos sete vezes. Depois, dá-se uma fervura rápida e quebra-se o bacalhau em lascas pequenas, mas gorduchas.
Prepara-se a batata palha, descascando e ralando as batatas, secando-as apertadas num pano de prato e depois fritando-as em óleo bem quente. Não se deve usar batata palha industrial comprada em supermercado.
Num pouco de azeite, em panelão de ferro de fundo grosso, frita-se chouriço espanhol picadinho. Neste azeite, que fica vermelho por causa do chouriço, com alguns dentes de alho esborrachados, refoga-se a cebola, picada bem miudinho, até virar uma pasta. Mas pode-se parar antes, se preferir-se a cebola mais consistente. Para dar mais cor, pode-se acrescentar colorau.
Acrescenta-se o bacalhau, mexendo bem para incorporar à cebola. Desliga-se o fogo e na panela ainda bem quente rega-se a pasta de cebola e bacalhau com os ovos bem batidos. Recomenda-se bater as claras em neve à parte e depois juntar as gemas. O calor do bacalhau cozinha levemente os ovos. Mistura-se bem e deixa-se descansar. Enfeita-se com pimentões coloridos picados, azeitonas sem caroço cortadas em rodelas, alcaparras e cheiro verde. Na hora de servir, aquece-se bem a panela e acrescenta-se a batata palha, misturando bem. A batata dá o crocante e ajuda a equilibrar o sal do bacalhau. Salgar se for preciso e temperar com pimenta caiena a gosto.
É tão gostoso que as pessoas repetem ate acabar, daí o nome: bacalhau que nunca chega. No dia seguinte, se sobrar, acrescenta-se mais batata palha para voltar a ficar crocante.

Esta receita é praticamente idêntica à do tradicional Bacalhau à Brás. Muda só a ordem dos fatores, o que muito altera o produto. Então lá vai a receita do Bacalhau à Brás do livro Cozinha Tradicional Portuguesa, de Maria de Lourdes Modesto, a bíblia da culinária portuguesa que muito recomendo:

Demolha-se o bacalhau como habitualmente, retira-se-lhe a pele e as espinhas e desfia-se com as mãos. Cortam-se as batatas em palha e as cebolas em rodelas finíssimas. Pica-se o alho. Fritam-se as batatas em óleo bem quente só até alourarem ligeiramente. Escorrem-se sobre papel absorvente. Entretando, leva-se ao lume um tacho, de fundo espesso, com o azeite, a cebola e o alho e deixa-se refogar lentamente até cozer a cebola. Junta-se, nesta altura, o bacalhau desfiado e mexe-se com uma colher de madeira para que o bacalhau fique bem impregnado de gordura. Juntam-se as batatas ao bacalhau e com o tacho sobre o lume deitam-se os ovos ligeiramente batidos e temperados com sal e pimenta. Mexe-se com um garfo, e logo que os ovos estejam em creme, mas cozidos, retira-se imediatamente o tacho do lume e deita-se o bacalhau num prato ou travessa. Polvilha-se com salsa picada e serve-se bem quente, acompanhado com azeitonas pretas.

Este livro de receitas tem aquela deliciosa lógica portuguesa, como na receita de Bolos Podres do Natal: "Num tacho levam-se ao lume todos os ingredientes, com excepção da farinha, do açúcar e das amêndoas". Acontece que além destes três, não há mais nenhum, só água e azeite. Teria sido mais lógico escrever: "Leva-se ao lume a água e o azeite". Mas não em Portugal.


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Thursday, December 22, 2005

Ned Flanders,o politicamente correto

Por trás da cômica polêmica sobre Bonner e Homer, está um projeto sinistro. O professor da USP Laurindo Lalo, que se aproveitou de uma piada do Bonner para atacá-lo, escreveu o artigo "A Necessidade do Controle Público da Televisão". O professor foi jornalista (o currículo dele inclui ter sido editor internacional da TV Cultura na época da ditadura militar) e vereador em São Paulo pelo PT. Se entendi bem, foi um dos fundadores da Andes, a organização de classe dos professores das universidades públicas.

Leia aqui a íntegra do artigo. Reproduzo no final alguns trechos.

A mentalidade é a mesma que regia a fracassada "Cartilha do Politicamente Correto" e outras tentativas de controle ideológico que fazem parte do programa político do PT, agora quase naufragado.

O professor Lalo é daqueles que enxergam um "monopólio do pensamento único" na mídia e querem substitui-lo pelo monopólio do pensamento deles, petistas ou ex-petistas. Felizmente, com o naufrágio do PT, não vai acontecer. Será preciso ir à Venezuela de Chavez ou à Cuba de Fidel, à Coréia do Norte de Kim Jong Il e outros paraísos do autoritarismo para ver o que é o pesadelo do "controle público" da mídia. O uso sistemático da expressão "controle democrático" mal disfarça o caráter fascista e corporativista do projeto.

Do mesmo modo que o PT é um filhote da ditadura, essas tentativas de controle ideológico têm muito a ver com o nosso passado autoritário. Esse pessoal "politicamente correto" não acha um absurdo existirem no Brasil coisas antidemocráticas como uma Lei de Imprensa e a exigência de diploma de jornalista para exercer a profissão. O monopólio das faculdades de jornalismo sobre o acesso às redações não incomoda a esses professores.

Também convivem bem com um dos sistemas educacionais mais perversos do mundo, onde é garantido aos mais ricos o acesso a universidades federais gratuitas, já que as escolas públicas de segundo grau não preparam seus alunos para enfrentar a competição dos egressos das escolas particulares. Introduzir "quotas" só disfarça essa perversidade com um verniz politicamente correto.

Como o professor Lalo foi jornalista, ele deve saber que o processo de edição e programação de notícias na mídia é e sempre será falho, ou seja, humano. Mas daí a afirmar que esse processo é controlado por um quimérico "monopólio do pensamento único", e que o "controle público" resolveria tudo, é lamentável.

Rejeitar o processo real de competição e colaboração que existe em qualquer veículo de comunicação, como sendo "imposição do mercado", ou, pior, "do patrão", não é preparar os futuros jornalistas para exercerem com sucesso a profissão. O resultado é a atitude cínica de achar que o processo é viciado e não há nada a fazer enquanto não vem o tal "controle público".

É triste constatar isso, mas os valorosos petistas que lutaram contra a dtadura não aprenderam o que é democracia.

E já que a polêmica gira em torno dos Simpsons, sugiro Ned Flanders como o personagem para representar o papel do professor Lalo. É aquele fundamentalista cristão politicamente correto que quer policiar o pensamento alheio. Num dos pesadelos do Homer, ele constrói uma máquina do tempo que o leva ao futuro, onde Ned Flanders manda no mundo. Direita e esquerda se encontram.

Seguem os trechos do artigo:

"As ondas da televisão trafegam pelo espaço eletromagnético, um bem público, escasso e finito e suas mensagens chegam diretamente aos domicílios, dentro de um reduzido leque de alternativas oferecidas aos telespectadores dos canais abertos, a maioria absoluta da população brasileira. Daí a necessidade de ser regulado pelo Estado, com o objetivo de evitar privilégios.

(...) Ao órgão regulador caberia a abertura das licitações para a concessão de canais de rádio e TV, o julgamento das propostas levando em conta preferencialmente o projeto de programação apresentado, o acompanhamento da programação levada ao ar e a publicação periódica de avaliações da qualidade oferecida. Dessa forma nenhum julgamento seria feito a priori. Aos detentores das concessões seria dada liberdade total de colocar nas telas o que desejassem, cujo limite seria a responsabilização caso infringissem o disposto no contrato de concessão, na lei e nos valores sociais em vigência naquele momento determinado.

Dessa forma, os integrantes do órgão regulador operariam baseados na norma escrita e no consenso social. Seriam respaldados por uma constante auscultação da sociedade. O que seria feito através de pesquisas capazes de revelar o ânimo dos diferentes grupos sociais diante do que lhes pode oferecer esse serviço público de entretenimento, informação e educação. O êxito de um sistema como esse está condicionado a dois fatores: poder de sanção e transparência. Sem formas de punição não há como exigir qualidade e respeito as normas e valores. Caberia ao órgão regulador o papel de advertir, multar, suspender e até de cassar concessões de empresas refratárias ao cumprimento do que ficou estabelecido ao receber a autorização para operar um canal de TV. Mas esse processo só seria eficiente e democrático se baseado na mais ampla transparência, com o debate da qualidade da programação televisiva sendo constante e ocupando espaços na própria televisão, nos veículos de comunicação impressos, na internet e dai repercutindo de forma ampla em toda a sociedade."



professor Laurindo Lalo

Wednesday, December 21, 2005

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VIVA HOMER SIMPSON

Fiquei horrorizado com o artigo publicado no Carta Capital por um professor da USP que visitou o Jornal Nacional e achou por bem detonar o William Bonner.

Não sei se o professor em questão já trabalhou em jornal ou TV, mas acho que não. Todo jornalista que participou de uma reunião de pauta sabe que muito pouco nessas reuniões pode ser levado a sério. O professor deve achar que uma reunião de pauta teria que ser como uma aula dele, profunda, cheia de insights e discussões detalhadas.

Na vida real de quem trabalha em jornal, reunião de pauta não é assim. É claro que nós jornalistas levamos muito a sério o que fazemos, mas quem algum dia trabalhou em jornal sabe que essas reuniões de pauta têm como principal objetivo começar o dia de uma forma alegre, descontraída, engraçada. Nada em comum com uma aula na USP.

É óbvio que os principais assuntos, o que realmente é notícia, vão ser cobertos. Mas há "praças", ou seja, cidades, onde naquele dia específico nada de muito importante está acontecendo. Isso é normal. E no caso da "revelação" do professor da USP sobre o JN, a praça de New York não tinha nada de importante a oferecer porque eram sete e meia da manhã em New York.

Eu fui chefe do escritório da Globo em New York nos anos 90 e sei o que é, no inverno, quando em NY são três horas a menos que no Brasil, ter que participar de uma reunião de pauta na qual as outras praças já estão com o dia definido, quando na nossa praça ainda é noite.

O professor da USP resolveu "analisar" a resposta do William Bonner à matéria oferecida por New York a essa hora. Bonner teria dito que "o Homer não vai entender". O professor perguntou quem era Homer e Bonner teria respondido que era o Homer Simpson.

O professor da USP concluiu que o Bonner tinha desprezo pelo público do JN ao representá-lo pelo personagem do desenho animado. Segundo o professor, Homer Simpson é um débil mental.

Em primeiro lugar, é preciso dizer que piadas ditas numa reunião de pauta nunca deveriam virar motivo de polêmica. O que importa é o que vai ao ar no telejornal, mas o professor não se preocupou com isso. É bem mais fácil explorar uma brincadeira na reunião de pauta, e foi o que ele fez.

Mas o caso é bem mais grave.

O professor da USP, supostamente alguém que estuda e ensina "comunicação", deveria saber que Homer Simpson está longe de ser um débil mental.

Existem dezenas de estudos acadêmicos sobre Homer Simpson, não sobre a "debilidade mental" vista pelo míope professor da USP, mas sobre a ambiguidade e profundidade do personagem.

Homer encarna todas as contradições do homem contemporâneo. É idiota e ao mesmo tempo é gênio. Tem mestrado em engenharia nuclear e ao mesmo tempo provoca acidentes na usina onde trabalha. É um bom pai e marido e, ao mesmo tempo, um desastre.

Homer acredita em Deus e desafia Deus.

As citações de Homer Simpson são usadas em aulas de Filosofia e Religião nas melhores universidades dos Estados Unidos e, pasmem, da Europa. Pelo visto a USP está acima disso.

Uma pesquisa recente divulgada pela BBC revelou que Homer Simpson - "the lovable Homer Simpson", segundo a BBC - é o americano mais querido no mundo, tendo superado Abraham Lincoln e Martin Luther King.

Todo mundo se identifica com Homer. Menos, é claro, o professor da USP. Quem estará certo? O mundo inteiro, ou o professor paulista?

Tuesday, December 20, 2005



A tela acima é de Thereza Miranda. As fotos, peguei no flickr. O Rio é a melhor cidade do mundo. Não vem que não tem.

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Wednesday, December 14, 2005

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O MENINO DA BOLHA

Bubble Boy, o menino da bolha, é o novo apelido de George W. Bush. A revista Newsweek mostrou Bush na capa vivendo dentro da bolha. Bush se cerca de sicofantas, só lê o que os mesmos puxa-sacos lhe dão pra ler, não vê TV nem lê jornais e revistas, vive num mundo à parte.
O âncora da rede NBC, Brian Williams, entrevistou Bush e mostrou a ele a revista. Bush confessou que não tinha visto a Newsweek da semana. E negou que viva numa bolha. Claro, quem vive dentro da bolha não pode vê-la. Bush disse que recebe bons conselhos de gente muito capaz e conversa com pessoas de todo tipo, que lhe dão informações. “Acabo de falar com o presidente de Honduras”, ele disse.
Bush não tem noção do próprio ridículo, uma das consequências de viver na bolha. O presidente tentou fazer graça e só piorou a situação. Disse a Williams que, se de fato ele vive numa bolha, então a única pessoa capaz de penetrar na bolha é a mãe dele, Barbara. Freud explica. Williams respondeu: “Vou contar para os caras da Newsweek”. E Bush: “Foi a Newsweek quem deu a história da bolha?” Em poucos minutos ele já tinha esquecido o nome da revista que o jornalista lhe mostrou. Uma das vantagens de viver na bolha é que os fatos desagradáveis são imediatamente apagados da memória. O fracasso da invasão do Iraque, por exemplo. Bush disse a Williams, num primor de lógica, falando da guerra que ele mesmo começou: “Tivesse ou não que acontecer, estou convencido de que tinha que acontecer”.
Seymour Hersh, na revista New Yorker, reportou recentemente o que assessores de Bush lhe contaram: o presidente está convencido de que Deus guia as decisões dele. Daí a inevitabilidade da guerra no Iraque. Já que foi uma decisão de Deus, não pode ser discutida. Bush tem certeza de ter sido escolhido por Deus e por isso nunca erra. As pessoas que o cercam, ou para puxar saco ou para manipulá-lo, reforçam essa crença. O jornal satírico The Onion, deu outro dia em manchete: “Voz de Deus desmascarada: é o vice-presidente Dick Cheney falando com Bush pelo intercom”. Hersh confirma na reportagem dele que é Cheney quem comanda o governo e manipula o crédulo Bush. A piada de The Onion não está longe da verdade.
Um diplomata estrangeiro que foi visitar Bush na Casa Branca recebeu antes instruções da Secretário de Estado Condoleezza Rice: “Não dê informações negativas nem diga nada que possa irritá-lo”. Bush vive cercado de mulheres como Rice que cuidam da manutenção da bolha: Laura, a primeira-dama, e Karen Hughes, a marqueteira que agora tenta melhorar a imagem de Bush no mundo árabe.
Bush teve a cara de pau de dizer a Williams que encontra mais gente do que Abraham Lincoln encontrava, porque tem o Air Force One, o jato presidencial. Uma das imagens mais tragicômicas de Bush é a do sobrevôo de Nova Orleãs inundada. O presidente olha pela janela do avião. É assim que ele vê o mundo, sobrevoando, de dentro da bolha. O presidente prometeu que Nova Orleãs não seria abandonada. Mas a promessa já foi esquecida como tudo que ele promete. A cidade foi abandonada pelo governo federal e não há sequer planos para reconstrui-la.
Quando Bush faz discursos, a platéia é sempre selecionada para garantir que todos sejam fãs do presidente. Dizem os assessores que Bush não admite críticas e fica irritado, reage com fúria, quando algo o desagrada. Tem pavio curtíssimo. Ele anda zangado com o deputado Jack Murtha, que tem sido o mais destacado crítico da guerra no Iraque. Murtha é um veterano da guerra do Vietnam, herói de guerra, ligado aos militares. É um porta-voz dos oficiais que se vêm obrigados a lutar na guerra fracassada de Bush. O deputado mandou uma carta à Casa Branca, pedindo a Bush um plano para sair com honra do Iraque. A carta foi ignorada durante sete meses. Murtha acabou vindo a público para reclamar, em nome dos militares, da total falta de planejamento em torno dessa guerra. Bush ficou furioso.
Bush ainda tem pela frente mais três anos de desgoverno. Será que a bolha aguenta tanto tempo sem estourar?

Tuesday, December 13, 2005

Matisse, Le bonheur de vivre

A entrevista que Wim Wenders me deu vai ao ar em 19/12 no Milênio da Globo News. Para o Sem Fronteiras do dia 22/12, sobre a felicidade, entrevistei o filósofo James Pawelski no Centro de Psicologia Positiva da University of Pennsylvania. Ele faz parte do movimento que prega uma intervenção positiva na vida das pessoas. Algumas das receitas que eles propõem para treinar as pessoas a serem mais felizes:
1) Contar as bênçãos. Todos os dias, escrever três coisas boas que aconteceram, detalhando o que você fez para que cada uma acontecesse. Ao fim de seis meses, os psicólogos positivos garantem que a pessoa se sentirá mais feliz.
2) Cartas de gratidão. Escrever cartas agradecendo o que fizeram de bom por você. Entregar cada carta pessoalmente, lendo em voz alta para a pessoa a quem ela se destina.
3) A melhor maneira de ser feliz é fazer a felicidade alheia, seja de que jeito for.
Comentei com o entrevistado que tudo isso soa a religião. De fato, ele disse, as religiões são bem sucedidas porque ajudam as pessoas a serem mais felizes.

Monday, December 12, 2005

colorau

Para o fim de ano, um cardápio bem brasileiro. Fiz o picadinho, menos gostoso do que aquele que a minha mulher Angela faz, mas não ensina. Não é que ela não queira, é que não sabe ensinar. Perguntei, por exemplo: quanto de colorau você bota? Ela pensou, pensou, e lembrou: boto um tanto! Grande ajuda...
Cortei dois quilos e meio de carne de segunda em cubos de 3 cm. No azeite, refoguei quatro cebolas grandes picadas, até ficarem quase caramelizadas. Acrescentei a carne, mexi para misturar bem, salguei, tampei a panela e baixei o fogo para o mínimo. A própria carne solta água. Só é preciso mexer de vez em quando, pra não grudar. Se precisar de mais água, pingar um pouco. Pronto. Leva um tempão (no caso, duas horas; depende da carne) até a carne ficar bem macia e o molho engrossar. Quando começou a amaciar, botei o colorau, duas colheres de sopa rasas. É um pó feito com urucum. Tinha sobrado pouco dos picadinhos da Angela (ela usa um tanto...). Completei com outros temperos vermelhos: pó de chili, suave, mexicano; oro molido, pó de pimentão espanhol; e um pouquinho do açafrão que Paulo Coelho trouxe do Irã. Ficou um gostinho diferente.
Para acompanhar: farofa, couve mineira, batatinhas assadas no forno, torresmo, feijão e arroz.
Também fiz um pernil, mas não ficou muito bom, sobrou.

açafrão

Thursday, December 08, 2005



Coroa de cordeiro

Esta é fácil, simples e rápida. E a coisa mais gostosa que eu fiz até hoje. Adaptei a receita da mestra Julia Child.
Pedi ao açougueiro para preparar uma costela de cordeiro "à francesa". Cada rack (é assim que se chama em inglês, rack of lamb) tem em geral oito costeletas. Se for mais gente, a coroa poderia ser feita com dois racks, 16 costeletas. O açougueiro limpa toda a carne e gordura em torno das pontas dos ossos. Depois faz incisões entre as costeletas, dobra-as num círculo e costura as pontas. Viradas para cima, as pontas dos ossos formam uma coroa. Levou uns 20 minutos esta operação, que é complicada, tem que ser feita por craque.
Esquentei o forno ao máximo (500 graus Fahrenheit). Esfreguei no cordeiro: sal grosso moído, pimenta do reino, mostarda de dijon (daquela grossa, à l'ancienne), alho esmagado e picado (nunca esprema o alho, que tira o gosto), cheiro verde picadinho (com tesoura, pois com faca perde o sabor) e tomilho. No meio da coroa enfiei meia colher de sopa de manteiga.
Vinte minutos antes de levar a coroa ao forno, botei para assar uma travessa com tomates inteiros bem temperados e recheados com três tipos de queijo ralado.
Assei o cordeiro por 30 minutos numa bandeja de metal levemente untada de azeite. Devia ter usado menos azeite porque, chegados os 30 minutos, o azeite começou a queimar e soltar fumaça. Mas como eu desarmei o alarme de incêndio, os bombeiros não vieram arrombar a porta (é o que acontece). Foi só abrir as janelas (com frio abaixo de zero lá fora).
Tomei a temperatura dentro da carne: 120 graus. Mais que isso, começa a secar. Desliguei o forno e botei, em cima da porta aberta, a travessa com a coroa de cordeiro coberta com papel de alumínio para terminar o cozimento, mais 10 a 15 minutos.
Pronto. Servi o cordeiro com os tomates, que ficaram prontos ao mesmo tempo. Separamos as costeletas com uma faca afiada de lâmina larga, à medida que íamos comendo.
Angela e eu nunca comemos nada tão gostoso. A carne rosada ficou bem molhada, suculenta, entre mal passada e no ponto. A crosta, crocante. A gordura firme, quase transparente, derretendo na boca. Angela notou que nosso cordeiro não tinha nem um pouquinho do travo amargo do cordeiro cozido além do ponto. Eram oito costeletas, teria dado para três pessoas. Mas comemos todas, roendo os ossos porque é junto deles que fica a carne mais saborosa. Melhor do que carne de porco...

Leitão, cordeiro e pato, três carnes saborosas


Dia de lembrar John. E Tom que voou também daqui de New York em 8 de dezembro de 1994. Pra Tom e John e outros passarinhos queridos que voaram:
Passarim

Wednesday, December 07, 2005



O que aconteceu com Salman Rushdie? O último livro dele, Shalimar the Clown, é um tremendo fracasso de vendas. Apenas 26 mil exemplares, o que no mercado americano não é nada – menos de 100 mil não conta. Será que é porque foi lançado antes no Brasil?
Eu adorava Salman Rushdie desde que li no, fim dos 90, The Moor’s last sigh. Um romance deslumbrante. Corri pra ler outros e gostei muito de Midnight’s Children e Shame. Já Satanic Verses me irritou. Mal construído, longo demais, com momentos brilhantes mas no conjunto bem pior que os outros. Foi justamentre o livro que levou à absurda fatwa do aiatolá Khomeini condenando Rushdie à morte, não pela má qualidade literária, mas por blasfemar contra o profeta. Leitores e escritores no mundo todo se uniram para repudiar a fatwa. Alguns tradutores do livro foram assassinados. O caso serviu para dividir de um lado as pessoas de bem, que deram apoio incondicional a Rushdie, do outro os canalhas que apoiaram Khomeini, entre eles o escritor John le Carré.
Durante oito anos, Rushdie viveu escondido, protegido por policiais ingleses. Em 1996, aqui em New York, minha mulher Angela encontrou Rushdie sozinho num bar e acendeu o cigarro dele. “Você é louca!”, eu me espantei. “Podia ter explodido!"
Ao contrário do que se pensa, a fatwa continua em vigor, mas por baixo do pano o governo iraniano negociou com o governo inglês e retirou a oferta de recompensa de 3 milhões de dólares pela morte de Rushdie, que voltou a aparecer em público em 1998. Desde essa época ele vive em Nova York, onde se casou com a belíssima atriz Padma Lakshmi.

Salman e Padma

Ter virado celebridade não fez bem a Rushdie. Tornou-se figura fácil da A-list de New York. Vendo-o falar, nas várias palestras que assisti, a pose dele é de quem se considera o maior escritor do mundo. Infelizmente os dois últimos livros antes de Shalimar, The Ground beneath her feet e Fury, são péssimos. Os primeiros livros fulguravam com fogos-de-artifício verbais. Os últimos são uma sequência de clichês mal alinhavados. Rushdie ficou Pop. Resolveu parodiar o estilo do “jornalismo” americano centrado em celebridades. Glamour, glitz, buzz são as palavras chave. Um brilho de superfície sem substância. E ainda por cima ele ficou moralista, agora que é o porta-bandeira contra o islamismo radical. Tem todo o direito de atacar os fundamentalistas, coberto de razão em muitos pontos, mas a literatura dele deixou de ser arte para virar um requentado de slogans. O texto perdeu a vida. Por isso não me surpreende o fracasso de Shalimar, que não li.
O problema de Rushdie é comum a todos ou quase todos os escritores que vendem muito e viram celebridades. Conheço um, dos mais bem-sucedidos, que vive em pânico, apavorado com a possibilidade de que aconteça com ele o que aconteceu com Rushdie: de repente parar de vender e de ser lido. Pode acontecer com qualquer um e aconteceu com muitos. Quem se lembra de Pearl S. Buck, Lin Yutang e Mika Waltari? Na geração dos meus pais estavam entre os mais lidos e famosos. Hoje, não só ninguém ouviu falar deles, como é difícil achar os livros até em sebos. E como não chega a ser literatura, não são estudados na universidade e ninguém escreve biografias sobre eles. Lamento ter perdido meu tempo na adolescência lendo essas bobagens, mas li. Falavam de mundos exóticos e fascinantes, um pouco como Salman Rushdie hoje. Mas ainda não consigo aceitar que Rushdie tome o mesmo destino. Os primeiros romances dele têm qualidade.
Se não ficaram nem os sucessos dessa época recente, na qual ler livros era um hábito comum, o que será do que se escreve hoje? A fragmentação e irrelevância dos textos a se multiplicarem vertiginosamente – e eu como um dos milhões de blogueiros do mundo contribuo para isso – faz lembrar o futuro inventado por Herman Hesse (outro que saiu de moda) no romance Magister Ludi. Hesse criou o “jogo das contas de vidro” (título do livro em português e inglês) para tentar recuperar o sentido e a sabedoria perdidos. Um projeto tão datado quanto o dos utópicos do passado.
Frequento universidades americanas para entrevistar professores, em geral gravando em bibliotecas espalhadas pelos vários departamentos. São livros doados por catedráticos falecidos. Invariavelmente, títulos que não interessam a mais ninguém, especialmente na área de ciências humanas – mas imagino que nas ciências exatas seja ainda pior. Resultado de anos de pesquisas e de vidas inteiras, encalhados em estantes poeirentas de onde nunca sairão, a não ser para o incinerador. Esta semana estive no departamento de Ciência Política da augusta Columbia University. A coleção na biblioteca era de um professor dos anos 40 e 50. Não encontrei um único tomo de interesse. Alguns são hilariantes: “La France Avait Raison”, escrito em 1945, sobre o período pós-Grande Guerra, e “The Monarchy is Perfect”, de 1958, sobre a realeza britânica, que segundo o autor é a única coisa sagrada que une os súditos.
Mas é melhor ter milhões de livros irrelevantes do que livro nenhum. Então, que os Rushdie e outros aproveitem seu momento de fama, que passa tão rápido, para nos afogar em textos nos quais, quem sabe, alguém encontrará beleza e sentido.

porco confinado

Por coincidência acabo de ler dois livros que tratam, entre outros temas, do sofrimento dos animais: Pig Perfect, de Peter Kaminsky, e Disgrace, de J.M. Coetzee (pronuncia-se Cú-tsi). Nunca simpatizei com a causa do direito dos animais. Com tanto por fazer pelos direitos humanos, acho um desperdício de tempo e energia. Fiquei irritado com a onda de simpatia e ajuda para os animais domésticos de New Orleans. E as crianças negras? Me cheira a narcisismo de primeiro mundo, além de racismo. Uma forma cômoda e quixotesca de purgar a culpa de uma classe média atolada na abundância.



Mas os dois livros me obrigam a olhar de outro jeito.
Pig Perfect começa como uma ode ao porco - ou melhor, à carne de porco. Kaminsky não tem o menor problema em matar porco para comer a carne deliciosa. Na busca do porco perfeito, ele vai ao sul da França e à Espanha, onde as cepas ibéricas, animais criados soltos comendo bolotas de carvalho, produzem a melhor carne de porco do mundo. Ele descobre numa ilha da Geórgia varas de porcos selvagens descendentes dos primeiros suínos trazidos para a América do Norte pelo conquistador espanhol Hernán de Soto. Transporta dezenas desses porcos para fazendolas onde eles passam a ser criados com resultados magníficos.
E aí ele nos leva ao inferno: as fábricas de carne suína. Quem já esteve numa granja onde galinhas são criadas confinadas sabe do que estamos falando. Pois a fábrica de porcos é uma granja elevada a N, em crueldade, fedor e danos irreparáveis ao meio-ambiente. Um horror. Não vou contar detalhes porque é de vomitar.
O confinamento causa doenças, por isso os porcos são entupidos de antibióticos. Oitenta por cento dos antibióticos consumidos nos EUA vão para os animais em confinamento (porcos, galinhas, perus, vacas).
A carne de porco comprada no supermercado vem dessas fábricas. Por isso é seca, sem gosto e pouco saudável. Todas as qualidades do porco criado solto se perdem no confinamento.
A indústria do porco é recente, começou nos anos 70/80, mas se alastrou e destruiu os pequenos criadores. A produção de porco em massa faz parte do complexo militar-industrial americano. A carne de porco é a principal fonte de proteína nas rações dos centuriões do novo Império.
Tudo isso dá vontade de parar de comprar carne de porco, a não ser aquela fornecida pelo que resta de pequenos produtores, e que pode ser encontrada na Internet.
O sofrimento dos porcos submetidos a esse inferno é horrível. Dá pra entender quem luta pela libertação dos animais, mesmo sendo uma causa quixotesca. A boa notícia é que esse pessoal se aliou às cooperativas de pequenos produtores e aos chefs e gastrônomos de elite que querem uma carne de primeira, para criar uma rede alternativa. Isso ajuda mas é pouco. O certo era o governo intervir para acabar com os absurdos da indústria do porco. Só acontecerá se os cidadãos acordarem para o problema.
O livro de Coetzee é um romance. Os temas são o envelhecimento, o conflito racial na África do Sul, e o sofrimento dos animais. O protagonista é um professor universitário que cai em desgraça. A rendenção vem no trabalho com uma defensora dos direitos dos animais, que faz eutanásia em cães doentes. David, o professor, redescobre sua humanidade num viralata mutilado. Contado assim parece muito piegas, mas Coetzee, prêmio Nobel de 2003, é implacável com o sentimentalismo.
Mais uma coincidência: o artigo na New Yorker da semana sobre os porcos selvagens que viraram uma praga nos EUA. Já são cinco milhões em dezenas de estados - por coincidência, ou não, os estados que reelegeram Bush em 2004. Isso me fez lembrar o romance Oryx and Crake de Margaret Atwood, sobre a extinção da humanidade neste século. Uma das pragas que tomam conta do planeta: mutantes de porco criados em laboratório, os pigoons, cruza de porco com racoon, que escapam ao controle e passam a devorar as pessoas.
Não está tão longe assim da realidade, já que uma das novidades da engenharia genética é o mutante de porco com genes humanos, para a criação de órgãos a serem usados em transplantes. Uma fábrica de porcos não para produzir carne, mas órgãos humanos. Afinal, segundo Hannibal Lecter, a carne de porco é a que mais se aproxima em sabor da carne humana.
Bom, vou parar pra ir comer meu toucinho.

leitões com genes humanos

Tuesday, December 06, 2005



Hoje no fim da tarde me deu vontade de comer carne seca com abóbora. Teria que ir a um bairro distante para comprar a carne seca num mercado brasileiro, e de qualquer maneira é preciso botar de molho de um dia para o outro.
Então comprei um pedaço de meio-quilo de toucinho de fumeiro (bacon slab, como os da foto) e uma abóbora (butternut squash).
Descasquei e cortei a abóbora em pedaços pequenos. Cozinhei até ficar macia.
Fervi o bacon por uns 20 minutos, para tirar o sal e o gosto de fumeiro. Depois cortei em seis fatias de meio centímetro cada uma e fritei numa frigideira de ferro de fundo grosso, em fogo médio, até derreter a gordura. Escorri.
Untei com azeite uma bandeja de forno e cobri o fundo todo com os pedaços de abóbora. Salpiquei quatro dentes de alho esmagados na lâmina da faca e picados, moí bastante noz moscada em cima, salguei e cobri com parmesão ralado bem grosso. Arrumei por cima da abóbora as seis fatias de toucinho e levei ao forno quente por uns 20 minutos, até o toucinho chiar, com cuidado para não deixar ele ficar seco nem queimado.
A bandeja foi direto para a mesa. Uma delícia. Não é carne seca com abóbora, mas tem a mesma combinação divina do doce da abóbora com o salgado da carne. Com a vantagem de que um toucinho de qualidade, cozido, frito e assado, tem sabores complexos.

butternut squash

Não tenho talento para traduzir sabores em palavras, mas traduzo um trecho de Pig Perfect, de Peter Kaminsjky, no qual ele descreve o gosto de uma fatia de carne de porco cozida à perfeição - sendo que o porco foi criado solto comendo bolotas de carvalho:
"A gordura derretia em gotas de âmbar. Tinha o sabor de algo envelhecido com toques de banana e damasco. E, é claro, havia a textura, esse componente essencial do sabor; a carne era macia mas resistia de leve à mordida. Impulsionando tudo vinham as notas altas e claras do sal. Quando o sabor é tão cheio, tão nuançado, tão complexo, pode ser comparado a uma sinfonia, deixando na boca um gosto final como um grande acorde, uma harmonia espectral, morrendo devagar no silêncio da platéia".

Saturday, December 03, 2005



Vale ler o artigo de David Rieff na revista do New York Times deste domingo sobre a morte da mãe dele, Susan Sontag. O título, Ilness as more than metaphor, a doença como mais do que metáfora, é glosa de doída ironia sobre o título de um dos livros mais lidos de Sontag, Ilness as metaphor, a doença como metáfora. Para quem perdeu a mãe, a doença e a morte são mais reais do que figuras de retórica. A verdade é que Susan Sontag não acreditava na morte - a dela, pelo menos.
Pra quem não sabe, ela foi uma das intelectuais mais influentes nos Estados Unidos e na Europa, nas últimas décadas. Em New York, era o centro em torno de quem o mundo intelectual e artístico girava.



Não consegui entrevistá-la, já estava muito doente.
O texto de David discute o que fazer diante de um câncer muito avançado. Lutar contra ele, submetendo-se a tratamentos dolorosos com pouca chance de sucesso, ou apenas aliviar o sofrimento no final da vida?
Susan Sontag, que já tinha superado dois cânceres, resolveu lutar.
O melhor no artigo de David, que entrevistou cancerologistas e outros especialistas em busca de uma resposta, é que não há resposta. Não há fórmula.
Mas apenas 30% dos pacientes sabem o que querem: lutar ou morrer. Os outros 70% entregam a decisão ao médico, o que é a pior saída, tanto para o paciente quanto para o médico.







Esse bilhão é meu!



A USAID, agência de ajuda ao desenvolvimento internacional do governo americano, publicou um edital no dia 30 de novembro oferecendo entre 1 e 1,3 bilhão de dólares a “qualquer entidade” que apresente um “programa de estabilização econômica e social de dez Cidades Estratégicas identificadas pelo Governo dos Estados Unidos como críticas para a derrota da Insurreição no Iraque. O número de Cidades Estratégicas pode se expandir ou se contrair ao longo do tempo”. O programa terá duração de dois anos, prorrogável por mais um ano, e as propostas serão aceitas até 31 de janeiro de 2006.
O edital foi publicado na moita num site do governo federal.
O blog de Arianna Huffington, Huffington Post, foi o primeiro a descobrir o edital. No sábado, o New York Times publicou um editorial a respeito, debochando desse programa, especialmente porque ele coincide com o anúncio pelo presidente Bush de mais um “plano para a vitória” no Iraque, recebido com total descrédito. No mesmo jornal, a colunista Maureen Dowd chama o plano de Bush de mera propaganda e sugere que a própria Casa Branca apresente esse plano à USAID para se candidatar ao programa de 1 bilhão de dólares.
A oferta está aberta a qualquer um e, como observa o editorial do Times, “experiência prévia não é necessária”. Portanto, vou apresentar à USAID meu próprio plano. Esse bilhão já está no papo!
As Cidades Estratégicas no Iraque ainda não estão identificadas. Mas não faz diferença. Meu plano é tão bom que se aplica a qualquer cidade iraquiana, mesmo que o número das que são estratégicas se expanda ou se contraia ao longo do tempo.



1) Ampliar o projeto já iniciado pelo Pentágono, de colocar notícias falsas nos jornais iraquianos, com manchetes otimistas, projeto a cargo de uma empresa chamada Lincoln Group e que foi revelado pelo Times no dia 1/12. As matérias já publicadas incluem títulos como “As areias sopram na direção de um Iraque democrático”, e “Combatentes da Al Qaeda rastejam como cães”. Dentro do programa para estabilizar as Cidades Estratégicas, os iraquianos seriam constantemente bombardeados com boas manchetes e ótimas notícias no rádio e na TV. O colunista John Tierney do Times sugere:
“Orgias de Osama: as fitas que a Al Jazeera não mostra”, “Alegria no Blecaute: 101 coisas divertidas para fazer quando falta luz” e “Suicida informa do Além: não há virgens”.
Nessa linha, eu acrescentaria:
“Tudo azul pra lá de Bagdá”, “Alá manda água pra iaiá”, “Alá manda água pra ioiô”, “Alá, meu bom Alá, obrigado por nos mandar o Bush”.
Para completar, construir em Bagdá um imenso túnel com forte iluminação numa das extremidades para que ninguém mais possa dizer que não há luz no fim do túnel.



2) Construção de um Ramadódromo em cada Cidade Estratégica para procissões religiosas durante o Ramadã e fora dele, promovendo o congraçamento das seitas sunita e xiita. Os iraquianos criariam suas Escolas de Sangue para desfilar diante de um júri formado por celebridades de Holywood, num show transmitido via satélite para todo o mundo. Seriam premiadas categorias como: Ala dos Flagelantes, Comissão de Sheiks (formada só por sheiks que embolsam comissão), Ala das 72 Virgens, Adereços Explosivos, Carros Alegóricos Bomba.

Comissão de Sheiks

3) Explorar a paixão do povo iraquiano pelo futebol, importando jogadores, técnicos e juízes brasileiros, afastados por fraudarem o resultado dos jogos. Isso garantiria sempre a vitória do time de casa em cada Cidade Estratégica, para a alegria da população. No campeonato nacional, o Iraquianão, todos os times das Cidades Estratégicas empatariam em primeiro lugar, cada um recebendo a taça Libertadores das Areias. Para estabilizar o país, a seleção nacional iraquiana ganharia a Copa do Mundo honorária na Alemanha, não precisando nem jogar.

seleção iraquiana

4) Distribuição de virgens. Já que a principal arma de recrutamento da Al Qaeda é a promessa de 72 virgens no Além, o governo iraquiano com o apoio do Pentágono esvaziaria essa tática terrorista, oferecendo virgens aos insurgentes ainda em vida. Este projeto permitiria à USAID ao mesmo tempo ajudar os países com excesso de virgens, como o Brasil e a Rússia, a escoar seus excedentes. Para garantir a permanência dos ex-terroristas no programa de estabilização, as 72 virgens seriam entregues a prazo, uma por mês, o que obrigaria o beneficiário a permanecer fiel à causa bushista durante seis anos. O programa teria como subproduto a redução do desemprego, já que o ex-militante poderia abrir um bordel com suas ex-virgens, propiciando uma nova fonte de renda.



5) Introdução do plano brasileiro de racionamento de energia. Em vez do atual caos de blecautes imprevisíveis nas piores horas, os iraquianos se submeteriam alegremente ao plano brasileiro de blecautes programados nas piores horas. A introdução do aparelho para monitorar o uso de eletricidade em cada residência criaria a ilusão de que um dia haverá eletricidade. Enquanto a luz não vem, aconselha-se ampla distribuição de velas e lamparinas.



6) Importação de milhões de jegues do Nordeste brasileiro. Já que falta gasolina no Iraque, embora o país possua a segunda maior reserva mundial de petróleo, a importação de jegues para puxar os veículos resolveria o problema. Sugere-se o treinamento prévio dos animais por instrutores do exército americano, para evitar a introdução do jegue-bomba.

carro movido a jegue estacionado em Bagdá

7) Libertar Saddam Hussein e pagar a ele bilhões de dólares – fora do pagamento por este programa, claro – para voltar à presidência como um fantoche dos americanos. Assim, a existência de centros de tortura, abusos de presos, assassinato de civis, roubo de dinheiro público, tudo o que tem sido documentado no Iraque, deixaria de ser atribuído às forças de ocupação e seus asseclas. Seria tudo, mais uma vez, culpa de Saddam.



8) Retirar os 150 mil militares americanos, e os gatos pingados britânicos e de outras nações, que ocupam o Iraque. O Iraque voltaria a ser uma nação soberana e independente, embora arruinada.

9) Levar a julgamento no tribunal de Haia, por crimes de guerra, George W. Bush, Richard Cheney e Donald Rumsfeld, mais todos os seus subordinados que comandaram a invasão do Iraque.

10) Pedir perdão a Alá por ter usado seu santo nome em vão e rezar para este plano dar certo.