Monday, December 26, 2005

duende em greve

NATAL FIM DE NOITE
Anna Maria Ribeiro (publicado no Montblaat)

- Desculpa entrar assim, mas estou exausto!
- Cruzes! Você me assustou! Como entrou?
- Pela janela do escritório. Estava aberta! Uma imprudência!
- É, eu sei. Não tenho coragem de fechar na cara da mangueira. Ela não ia entender nada. Mangueiras não são atingidas pela violência que vai por aqui. Somos amigas, faz tempo. Por que veio?
- Já disse! Estou exausto. Preciso descansar um pouco antes de voltar. E posso aparecer para você, que ainda acredita.
- Ah! É verdade. Acredito, sim. Muitas crianças hoje? Daí o cansaço, não é?
- Crianças?! Faz tempo que não me ocupo delas.
- Não?!!! Como não? Ainda ontem vi nas Lojas Americanas...
- Ah! Os de mentira. Estes continuam. Seria cruel eliminá-los. Na verdade as crianças acreditam mais neles. Tiram fotos. Fica sendo verdade. Eu mesmo nunca fui fotografado. Não gosto. Saio sempre mal na foto.
- Mas se não é pelas crianças o que é que veio fazer? Ainda hoje à noite vi você no momento em que Maria Clara abria os presentes. É a única criança da família. As outras, insubordinadas, foram crescendo sem pedir licença.
- Percebi sua expressão no momento em que ela abriu os embrulhos.
- Ah! Você viu! Mas se não era por Maria Clara... Deu pra bisbilhotar agora?
- Foi bisbilhotando que me dei conta.
- De quê?
- Dos adultos. Estão quase todos precisando. Muito mais que os pequenos. De uns anos para cá me voltei para eles. As crianças, de um jeito ou de outro, sempre ganham alguma coisa. Os pais se viram. E como! É admirável o que fazem. E as obras de caridade acabam providenciando alguma coisa para as muito pobres. Mas os adultos...
- Não tenho visto o resultado desta sua atuação. A maioria das pessoas está mal. Não é de presentes que precisam.
- E eu não sei? O que faço é pouco. Mas nesta noite, fabrico um pouco de alegria. E até esperança de dias melhores. Por uma noite.
- Você é santo! Podia fazer muito mais.
- Há controvérsias. São Nicolau detesta este duplo papel. Não assume a dupla personalidade. Então faço o que posso, sem santidade mesmo. Afinal tenho as renas. Ninguém mais tem, por lá. Posso me locomover. É uma grande vantagem. Os outros não descem à terra. Recebem os pedidos, é claro. E até providenciam alguns. E dão resignação aos que não os vêem atendidos. Mas eu posso me fazer presente. A presença é importante.
- Lá isto é.
- E você? Como está indo? Um dos motivos que escolhi sua casa para descansar é que você nunca pede nada. Por que?
- Você não sabe? Estranho. Pensei que fosse mais informado.
- Seria. Se tivesse mais tempo. Mas a maioria precisa mais do que você. Então não me aprofundo pro seu lado. Mas diga: o que é que você quer?
- O que você pode me dar já tenho: alegria hoje e esperança no amanhã. Por isto acredito em você. Não dá pra sacar?
- Ah! Me dá um copo d’água?
- Claro! (...) Mas não prefere beber um vinho? Um whisky?
- Nunca bebo em serviço. Não chega ser um sacrifício. Só trabalho uma noite por ano.
- Durante o ano, não?! E a fábrica de brinquedos? Os duendes?
- Faliu. Tive que despedir todo mundo. Foi terrível. A quantidade de duendes desempregados é espantosa. Me sinto culpado. Mas fazer o quê?
- É. Sei como é. Por aqui também é grande o desemprego. Dizem que melhorou. Mas não sei... Tenho esperança que sim.
- Todos os dias agradeço por isto: você acredita mesmo em mim. Cada vez são em menor número os que acreditam. Tenho pavor de acabar sumindo.
- Fica assim, não! Olha, faz uma exceção hoje. Vamos tomar um bom vinho olhando a mangueira. Está linda!
- Sabe o que é mais? Você tá certa. Me deu ânimo, sabe? Salta lá este vinho! Sobrou um pouco da torta de bacalhau?

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