Tuesday, February 28, 2006

Image Hosted by ImageShack.us

Camarão com quiabo ao vinaigrette

Acabei de inventar e comer com Angela, que adorou, este camarão com quiabo rapidíssimo e bem gostosinho. Comprei meio quilo de camarão médio limpo e descascado e meio quilo de quiabo congelado inteiro, do pequeno. Deixei o camarão um pouquinho no molho de dois limões e sal, depois fritei em duas levas, em azeite bem quente, onde refoguei alguns dentes de alho amassados e picados e cebolinhas picadas. Enquanto isso fervia um panelão de água com bastante sal e algumas folhas de louro para o quiabo, que também ficou descansando no molho de dois limões. Quando a água ferveu, cozinhei o quiabo congelado por cinco minutos tomando cuidado para tirar da panela antes de ficar mole e amarelado. Escorri o quiabo e banhei-o com um molho vinaigrette: quatro colheres de vinagre misturado com sal, três de azeite (em geral é mais azeite que vinagre, mas neste caso eu queria um molho azedinho, bem batido). Misturei o quiabo ao camarão e servi temperando com mais vinaigrette, sal e pimenta do reino. O quiabo feito assim, inteiro, não dá baba e fica crocante, al dente. O camarão também. O vinaigrette dá o azedinho que equilibra a doçura do camarão e do quiabo.

Monday, February 27, 2006

Image Hosted by ImageShack.us
Michelangelo, o Juízo Final

CARNAVAL CIDADÃO
Anna Maria Ribeiro

Acreditem! Lutei bravamente para neste Carnaval me entregar gostosamente para meus livros e meus discos. Inútil. O crime hediondo rodava em minha cabeça e teimava em lá ficar espantando todos os pensamentos amenos e agradáveis a que me julgava com direito. O crime hediondo a que estou me referindo não é, ao contrário do que possam pensar, o que teve a pena abrandada pelo STF. Estou me referindo ao crime hediondo cometido por este mesmo tribunal ao abrandar esta pena. Não consigo, como suas Excelências Ministros do Supremo, ser tão magnânima e tão compassiva e abrandar meu julgamento a respeito deles que também são confinados e segregados numa gaiola de ouro por nós inatingíveis. Vai daí que desgraçadamente não podem ser julgados pelo crime que cometeram. Para este não existe pena prevista no Código Penal. São de fato pessoas inexplicavelmente e legalmente acima do bem e do mal. Quem sabe até propositalmente é assim. Mas como reparar o mal que me fizeram e a todos nós? Quando comecei a enviar minhas crônicas ao Montbläat a intenção era divertir - a mim que as escrevia e aos possíveis leitores. Muitas vezes duvidei de estar cumprindo este papel. Mas me asseguravam alguns que sim e, vai daí, eu continuei a escrevê-las. Ver a vida com bom humor sempre foi um vezo meu. Afinal é a única que se tem. Vez por outra resvalei e falei de coisas que escapavam às peripécias causada pela bendita terceira idade, para mim velhice mesmo. Mas eram escapadas ligeiras e eu voltava rápido às minhas resenhas geriátricas. Hoje é com enorme desprazer que escrevo. Tenho assistido ultimamente pela TV às sessões do STF. Embasbacada vejo que usam, em seus votos, uma linguagem espantosamente incompreensível para o brasileiro médio e mesmo para os mais letrados. Isto precisa mudar. Falem claro, senhores, ou então parem de aparecer na telinha. Assumam, pela clareza, o significado do voto que proferem mascarado por palavras, impressionantes, sim, mas longe do alcance do homem comum, por anacrônicas ou herméticas. Me fizeram lembrar de um provérbio chinês: os rios pouco profundos turvam as águas. Por que são nestas turvas águas proferidos os votos dos Senhores Ministros. Votos estes difíceis de avaliação em sua justeza por não serem compreensíveis. Gostaria de escutá-los com a clareza necessária a evidenciar o real motivo que os levou a proferi-los. Não falo apenas de respaldos legais, técnicos, jurídicos. Falo de uma coisa maior. A moral, a ética, a decência e os costumes de um País. Não são (ou não deveriam ser) estes os norteadores de nossas leis? Estou enganada? Leis são divorciadas destes fatores? E se alguma Lei ou mesmo a mais importante delas – a Constituição – resvala em algum destes pontos não deveria ser alterada, ao invés de servir de respaldo a uma interpretação espúria? Diante do terror, agora aumentado, por esta decisão do STJ começo a ver algumas manifestações a favor da pena de morte. A Pena de Talião Legal começa a ser exigida. Et pour cause... É isto que querem estes nobres e eruditos senhores? Fazer com que a Sociedade em desespero comece a exigir retrocessos para se sentir mais segura? Ou que tenha, desprotegida e amedrontada, que tomar a si o encargo de defender sua família? É isto? A estas perguntas se somam uma infinidade de outras. Como vamos reagir? Vamos apenas assistir, como sempre? Vamos dar uma de inocentes do Leblon com o óleo quente nas costas vendo o navio passar? Bradar aos céus como estou fazendo aqui não basta e não tem qualquer efeito. É apenas e tão somente um desabafo que será lido por pouquíssimas pessoas. Da minha parte já escrevi a estes senhores. Mas é pouco. É muito pouco. Escrevi também ao deputado que elegi (Gabeira). Mas é pouco, é muito pouco. Estou escrevendo aqui. Também pouco, muito pouco. Não tenho conhecimento se estes senhores já, alguma vez na história, mudaram seu voto. Acho que não. São cultos demais. Importantes demais. Autoritários demais. Cientes demais de seu acerto. De qualquer modo inundá-los de mensagens contrárias seria bom. Pelo menos incomoda. Apenas um incômodo, é fato, já que não dependem estes senhores de nossos votos. Mas outros, sim. E através de um legislativo ético, honesto e decente, quem sabe... Aproxima-se uma eleição. Sei que está difícil escolher entre o pior e o menos pior. Mas no legislativo ainda existe uma minoria em quem podemos votar. O executivo é importante, é claro, mas para mim o mais importante sempre foi o legislativo. A saída se existe é por aí. E não basta votar. Temos que nos transformar em cabos eleitorais daqueles que demonstraram, ou indicam que podem demonstrar, valores e conhecimentos indispensáveis ao mandato. Tem que ser exigido por cada cidadão que lá coloca estes homens e mulheres que cumpram o papel que prometeram cumprir. A palavra é esta mesmo: exigir. Para isto não basta ter conhecimento de suas idéias, seus propósitos e sua vida pregressa. É imperioso acompanhar seu desempenho e cobrar qualquer desvio. Isto é óbvio? Claro que é. Mas o óbvio não é pouco profundo, nem turva as águas. E por ser óbvio a gente acaba por esquecer.
Image Hosted by ImageShack.us
Baudelaire, auto-retrato

Reversibilidade

Anjo da alegria, sabes que a desgraça,
O remorso, soluços, tédio e vergonha,
E o vago terror de uma noite medonha
Fazem do coração um papel que se amassa?
Anjo da alegria, sabes a desgraça?

Anjo da compaixão, conheces o rancor,
Os punhos que se fecham, lágrimas de fel,
Quando a vingança solta o infernal tropel
E nossas vidas doma, como um ditador?
Anjo da compaixão, conheces o rancor?

Anjo da salvação, conheces o delírio
Daqueles que têm febre e, como exilados,
Arrastam-se no hospício sobre os pés cansados
Movendo os lábios secos, implorando alívio?
Anjo da salvação, conheces o delírio?

Anjo da perfeição, as rugas não conheces?
O medo de ficar velho, a crueldade
De ler o horror secreto da piedade
No olhar onde o nosso bebia benesses?
Anjo da beleza, as rugas não conheces?

Anjo pleno de luz, gozo e seduções,
Davi agonizante pediria vida
Aos aromas da tua pessoa querida;
Mas a ti só imploro, anjo, orações,
Anjo pleno de luz, gozo e seduções!

Réversibilité

Ange plein de gaieté, connaissez-vous l'angoisse,
La honte, les remords, les sanglots, les ennuis,
Et les vagues terreurs de ces affreuses nuits
Qui compriment le coeur comme un papier qu'on froisse?
Ange plein de gaieté, connaissez-vous l'angoisse?

Ange plein de bonté, connaissez-vous la haine,
Les poings crispés dans l'ombre et les larmes de fiel,
Quand la Vengeance bat son infernal rappel,
Et de nos facultés se fait le capitaine?
Ange plein de bonté connaissez-vous la haine?

Ange plein de santé, connaissez-vous les Fièvres,
Qui, le long des grands murs de l'hospice blafard,
Comme des exilés, s'en vont d'un pied traînard,
Cherchant le soleil rare et remuant les lèvres?
Ange plein de santé, connaissez-vous les Fièvres?

Ange plein de beauté, connaissez-vous les rides,
Et la peur de vieillir, et ce hideux tourment
De lire la secrète horreur du dévouement
Dans des yeux où longtemps burent nos yeux avide!
Ange plein de beauté, connaissez-vous les rides?

Ange plein de bonheur, de joie et de lumières,
David mourant aurait demandé la santé
Aux émanations de ton corps enchanté;
Mais de toi je n'implore, ange, que tes prières,
Ange plein de bonheur, de joie et de lumières!


Poema Baudelaire, tradução Pontual
Image Hosted by ImageShack.us

Que dirás esta noite, alma tão ferida

Que dirás esta noite, alma tão ferida,
Que dirás, coração, solitário a sofrer,
À tão bela, à tão boa, à tão querida,
Deusa que a cada olhar te faz reflorescer?

-- Para cantar-lhe loas meu orgulho esbanjo:
Há doçura sem par na sua autoridade;
A carne espiritual tem perfume de Anjo
E, quando olha, veste-me de claridade.

Quer seja em plena noite e na solidão,
Quer seja numa rua e na multidão,
Seu fantasma no ar dança como uma chama.

Às vezes fala: "Sou bela e sou tua dona;
Ordeno que só ame o Belo, quem me ama.
Sou o Anjo da Guarda, Musa e Madona."

Que diras-tu ce soir, pauvre âme solitaire

Que diras-tu ce soir, pauvre âme solitaire,
Que diras-tu, mon coeur, coeur autrefois flétri,
À la très belle, à la très bonne, à la très chère,
Dont le regard divin t'a soudain refleuri?

-- Nous mettrons notre orgueil à chanter ses louanges:
Rien ne vaut la douceur de son autorité;
Sa chair spirituelle a le parfum des Anges,
Et son oeil nous revêt d'un habit de clarté.

Que ce soit dans la nuit et dans la solitude,
Que ce soit dans la rue et dans la multitude,
Son fantôme dans l'air danse comme un flambeau.

Parfois il parle et dit: "Je suis belle, et j'ordonne
Que pour l'amour de moi vous n'aimiez que le Beau;
Je suis l'Ange gardien, la Muse et la Madone."


Poema Baudelaire, tradução Pontual
Image Hosted by ImageShack.us

Toda ela

O Demônio, no meu desterro,
Esta manhã veio me ver
E para pegar-me em erro
Disse-me: "Queria saber

"De todas as coisas gostosas
Que nela merecem louvor,
Entre as partes negras ou rosas
Do seu corpo encantador,

"Qual é a mais doce." -- Ó alma!
Respondeste ao Abominado:
"Tudo n'Ela merece a palma,
Nada pode ser destacado.

"Como pode quem tudo adora
O que mais seduz escolher?
Ela deslumbra como a Aurora
E como a Noite traz prazer;

"E é por demais excelente
Do belo corpo a harmonia
Para que a razão impotente
Anote cada sinfonia.

"Sobre-humana alquimia
Que todos os sentidos une!
N'Ela o sopro é melodia,
D'Ela a voz faz o perfume!"

Tout entière

Le Démon, dans ma chambre haute,
Ce matin est venu me voir,
Et, tâchant à me prendre en faute,
Me dit: "Je voudrais bien savoir,

"Parmi toutes les belles choses
Dont est fait son enchantement,
Parmi les objets noirs ou roses
Qui composent son corps charmant,

"Quel est le plus doux." -- Ô mon âme!
Tu répondis à l'Abhorré:
"Puisqu'en Elle tout est dictame,
Rien ne peut être préféré.

"Lorsque tout me ravit, j'ignore
Si quelque chose me séduit.
Elle éblouit comme l'Aurore
Et console comme la Nuit;

"Et l'harmonie est trop exquise,
Qui gouverne tout son beau corps,
Pour que l'impuissante analyse
En note les nombreux accords.

"O métamorphose mystique
De tous mes sens fondus en un!
Son haleine fait la musique,
Comme sa voix fait le parfum!"


Poema Baudelaire, tradução Pontual
Image Hosted by ImageShack.us
Desenho de Baudelaire

Sempre a mesma

"De onde vem, você pergunta, essa tristeza
Subindo como o mar que bate no rochedo?"
-- Depois que o coração chega à madureza,
Viver é um mal. Quem não sabe este segredo?

É uma dor tão simples, nada misteriosa,
Como sua alegria, é óbvia demais.
Pare de perguntar, ó bela curiosa!
Sua voz é bem doce, mas não fale mais!

Não fale mais, ingênua, sempre embevecida!
Risada infantil! 'Inda mais do que a Vida,
A Morte nos teceu invisíveis lianas.

Deixe, deixe na ilusão eu me embriagar,
Como num sonho nos seus olhos mergulhar
Para dormir à sombra das suas pestanas.

Semper eadem

"D'où vous vient, disiez-vous, cette tristesse étrange,
Montant comme la mer sur le roc noir et nu?"
-- Quand notre coeur a fait une fois sa vendange,
Vivre est un mal. C'est un secret de tous connu,

Une douleur très simple et non mystérieuse,
Et, comme votre joie, éclatante pour tous.
Cessez donc de chercher, ô belle curieuse!
Et, bien que votre voix soit douce, taisez-vous!

Taisez-vous, ignorante! âme toujours ravie!
Bouche au rire enfantin! Plus encor que la Vie,
La Mort nous tient souvent par des liens subtils.

Laissez, laissez mon coeur s'enivrer d'un mensonge,
Plonger dans vos beaux yeux comme dans un beau songe,
Et sommeiller longtemps à l'ombre de vos cils!

Poema Baudelaire, tradução Pontual
Image Hosted by ImageShack.us
Baudelaire, auto-retrato

Eu te dou estas rimas para, se afinal

Eu te dou estas rimas para, se afinal
O meu nome, à noite, nos mais distantes anos
'Inda fizer sonhar os cérebros humanos,
Que tua memória permaneça imortal

Como os grandes mitos e os mistérios arcanos,
Impressione o leitor com um som irreal
E numa corrente mística e fraternal
Abrace pra sempre meus versos soberanos;

Do mais divino céu ao inferno abissal,
Só eu, maldita, mais ninguém te dá sinal!
Tu, olhos serenos e passos siderais,

Sombra tão leve de um efêmero fetiche,
Pairas acima dos estúpidos mortais,
Anjo de bronze, deusa do olhar de azeviche!

Je te donne ces vers afin que si mon nom

Je te donne ces vers afin que si mon nom
Aborde heureusement aux époques lointaines,
Et fait rêver un soir les cervelles humaines,
Vaisseau favorisé par un grand aquilon,

Ta mémoire, pareille aux fables incertaines,
Fatigue le lecteur ainsi qu'un tympanon,
Et par un fraternel et mystique chaînon
Reste comme pendue à mes rimes hautaines;

Être maudit à qui, de l'abîme profond
Jusqu'au plus haut du ciel, rien, hors moi, ne répond!
-- Ô toi qui, comme une ombre à la trace éphémère,

Foules d'un pied léger et d'un regard serein
Les stupides mortels qui t'ont jugée amère,
Statue aux yeux de jais, grand ange au front d'airain!


Poema Baudelaire, tradução Pontual
Image Hosted by ImageShack.us
Jeanne Duval, a amante de Baudelaire, por Manet

Um fantasma

I. As Trevas


Na funda tristeza da sepultura
Para onde o Fado me relegou;
Onde um raio rosado nunca entrou;
Onde é a Noite a senhoria dura

E eu sou o pintor que um Deus brincalhão
Condena a pintar nas trevas, coitado!
Onde, cozinheiro mortificado,
Escaldo e devoro meu coração,

Relumbra por instantes e fulgura
Um espectro que é graça e esplendor;
Quando se ergue em toda a sua altura,

Pelo porte oriental, sonhador,
Reconheço a visitante amorosa!
É Ela! Negra, porém luminosa.


II. O Perfume

Leitor, terás um dia respirado
Com embriaguez, lento degustar,
O grão de incenso que domina o altar
Ou de um sachê o almíscar apurado?

Com magia, profundo delirar,
Do presente que revive o passado,
Assim o amante no corpo adorado
Colhe na memória uma flor sem par.

Da solta e densa cabeleira dela,
Incenso da alcova, vivo sachê,
Vinha um aroma, felino buquê,

E as roupas de veludo ou de flanela,
Impregnadas do seu frescor tão bom,
Soltavam um perfume de vison.

III. A Moldura

Como a bela moldura dá à tela,
Mesmo que seja de um menor pintor,
Um não-sei-quê de encanto e esplendor,
Abrindo no real uma janela,

Assim, jóias, roupas, móveis, fartura
Iam bem com sua rara beleza;
Nada ofuscava a perfeita clareza,
Tudo lhe servia de envoltura.

Via-se às vezes o que ela sentia:
O mundo à volta a amava e queria;
Mergulhava a nudez, com que prazer,

Nos beijos do cetim e do arminho;
E, lenta ou brusca, sempre ao se mexer
Tinha a graça infantil de um macaquinho.

IV. O Retrato

Cinzas deixaram, Doença e Morte,
Desse fogo que o nosso amor queimou.
Do seu olhar tão carinhoso e forte,
Da boca onde o coração se afogou,
Daquele beijo tão irresistível,
Dos êxtases mais vivos que um clarão,
O que restou? Ai de mim, é horrível!
Um desenho pálido, um borrão

Que, como eu, na solidão falece
E que o tempo, velhote homicida,
A cada dia mais empalidece...

Negro assassino da Arte e da Vida,
Tu não matarás na minha memória
Ela que foi o prazer e a glória!

Un fantôme

I. Les Ténèbres

Dans les caveaux d'insondable tristesse
Où le Destin m'a déjà relégué;
Où jamais n'entre un rayon rose et gai;
Où, seul avec la Nuit, maussade hôtesse,

Je suis comme un peintre qu'un Dieu moqueur
Condamne à peindre, hélas! sur les ténèbres;
Où, cuisinier aux appétits funèbres,
Je fais bouillir et je mange mon coeur,

Par instants brille, et s'allonge, et s'étale
Un spectre fait de grâce et de splendeur.
À sa rêveuse allure orientale,

Quand il atteint sa totale grandeur,
Je reconnais ma belle visiteuse:
C'est Elle! noire et pourtant lumineuse.

II. Le Parfum

Lecteur, as-tu quelquefois respiré
Avec ivresse et lente gourmandise
Ce grain d'encens qui remplit une église,
Ou d'un sachet le musc invétéré?

Charme profond, magique, dont nous grise
Dans le présent le passé restauré!
Ainsi l'amant sur un corps adoré
Du souvenir cueille la fleur exquise.

De ses cheveux élastiques et lourds,
Vivant sachet, encensoir de l'alcôve,
Une senteur montait, sauvage et fauve,

Et des habits, mousseline ou velours,
Tout imprégnés de sa jeunesse pure,
Se dégageait un parfum de fourrure.


III. Le Cadre

Comme un beau cadre ajoute à la peinture,
Bien qu'elle soit d'un pinceau très-vanté,
Je ne sais quoi d'étrange et d'enchanté
En l'isolant de l'immense nature,

Ainsi bijoux, meubles, métaux, dorure,
S'adaptaient juste à sa rare beauté;
Rien n'offusquait sa parfaite clarté,
Et tout semblait lui servir de bordure.

Même on eût dit parfois qu'elle croyait
Que tout voulait l'aimer; elle noyait
Sa nudité voluptueusement

Dans les baisers du satin et du linge,
Et, lente ou brusque, à chaque mouvement
Montrait la grâce enfantine du singe.

IV. Le Portrait

La Maladie et la Mort font des cendres
De tout le feu qui pour nous flamboya.
De ces grands yeux si fervents et si tendres,
De cette bouche où mon coeur se noya,

De ces baisers puissants comme un dictame,
De ces transports plus vifs que des rayons,
Que reste-t-il? C'est affreux, ô mon âme!
Rien qu'un dessin fort pâle, aux trois crayons,

Qui, comme moi, meurt dans la solitude,
Et que le Temps, injurieux vieillard,
Chaque jour frotte avec son aile rude ...

Noir assassin de la Vie et de l'Art,
Tu ne tueras jamais dans ma mémoire
Celle qui fut mon plaisir et ma gloire!

Poema Baudelaire, tradução Pontual
Image Hosted by ImageShack.us

De profundis clamavi

Eu te imploro piedade, meu único amor,
Cá do abismo onde tenho a alma caída,
Universo sombrio, mundo sem saída,
Onde nadam na noite blasfêmia e horror;

Um sol sem calor passa no céu um semestre,
E, nos outros seis meses, só escuridão,
Nesta terra mais nua que o setentrião,
Sem animais, sem rios nem vida silvestre!

Não há horror maior do que o pesadelo
Da fria crueldade deste sol de gelo,
Da imensa noite igual ao Caos primordial;

Invejo a boa sorte do vil animal
Que pode mergulhar num sono sem tormento,
Enquanto para mim o tempo escoa lento!

De profundis clamavi

J'implore ta pitié, Toi, l'unique que j'aime,
Du fond du gouffre obscur où mon coeur est tombé.
C'est un univers morne à l'horizon plombé,
Où nagent dans la nuit l'horreur et le blasphème;

Un soleil sans chaleur plane au-dessus six mois,
Et les six autres mois la nuit couvre la terre;
C'est un pays plus nu que la terre polaire
-- Ni bêtes, ni ruisseaux, ni verdure, ni bois!

Or il n'est pas d'horreur au monde qui surpasse
La froide cruauté de ce soleil de glace
Et cette immense nuit semblable au vieux Chaos;

Je jalouse le sort des plus vils animaux
Qui peuvent se plonger dans un sommeil stupide,
Tant l'écheveau du temps lentement se dévide!


Poema Baudelaire, tradução Pontual
Image Hosted by ImageShack.us
Jeanne Duval, desenho de Baudelaire

Quando vai com a roupa em ondas furta-cor

Quando vai com a roupa em ondas furta-cor,
Embora apenas ande, parece que dança
Como a serpente mansa que o encantador
Na ponta do bastão levemente balança.

Como a areia morna e o deserto ar,
Alheios à humana sede de esperança,
Como o rolar sem fim das ondas pelo mar,
Indiferente a mim, leve, você avança.

Os olhos são forjados de metal brilhante,
E no ser singular, exótico, simbólico,
Cruza de antiga Esfinge com Anjo católico,

Onde tudo é de ouro, aço, luz, diamante,
Reluz eternamente, inútil mistério,
A fria majestade da mulher estéril.


Avec ses vêtements ondoyants et nacrés

Avec ses vêtements ondoyants et nacrés,
Même quand elle marche on croirait qu'elle danse,
Comme ces longs serpents que les jongleurs sacrés
Au bout de leurs bâtons agitent en cadence.

Comme le sable morne et l'azur des déserts,
Insensibles tous deux à l'humaine souffrance,
Comme les longs réseaux de la houle des mers,
Elle se développe avec indifférence.

Ses yeux polis sont faits de minéraux charmants,
Et dans cette nature étrange et symbolique
Où l'ange inviolé se mêle au sphinx antique,

Où tout n'est qu'or, acier, lumière et diamants,
Resplendit à jamais, comme un astre inutile,
La froide majesté de la femme stérile.

Poema Baudelaire, tradução Pontual
Image Hosted by ImageShack.us
Baudelaire, retrato de Jeanne Duval

Sed non satiata

Estranha divindade, filha do negror,
Perfumada mistura de almíscar e havana,
Obra de algum obi, um Fausto da savana,
Feiticeira de ébano, noite da cor,

Prefiro ao vinho tinto, ao ópio, ao licor,
O elixir da boca onde o amor se engalana.
Para ti meus desejos vão em caravana,
No poço dos teus olhos bebe minha dor.

Demônio sem perdão, não me queimes na pira,
Olhar negro por onde tua alma respira;
Como o Estige não vou nove vezes cercar-te

E é pena eu não saber, Megera libertina,
Para vencer teus brios e por fim dobrar-te,
No inferno do teu leito virar Proserpina!

Sed non satiata

Bizarre déité, brune comme les nuits,
Au parfum mélangé de musc et de havane,
Oeuvre de quelque obi, le Faust de la savane,
Sorcière au flanc d'ébène, enfant des noirs minuits,

Je préfère au constance, à l'opium, au nuits,
L'élixir de ta bouche où l'amour se pavane;
Quand vers toi mes désirs partent en caravane,
Tes yeux sont la citerne où boivent mes ennuis.

Par ces deux grands yeux noirs, soupiraux de ton âme,
Ô démon sans pitié! verse-moi moins de flamme;
Je ne suis pas le Styx pour t'embrasser neuf fois,

Hélas! et je ne puis, Mégère libertine,
Pour briser ton courage et te mettre aux abois,
Dans l'enfer de ton lit devenir Proserpine!

Poema Baudelaire, tradução Pontual
Image Hosted by ImageShack.us

A Beleza

Sou bela, ó mortais, um sonho de cristal,
E meu seio onde todos imploram favor
Nasceu para inspirar ao poeta um amor
Assim como a matéria, mudo e imortal.

Indecifrada esfinge, ao azul subi;
Neve no coração, a brancura é minha;
Odeio o movimento que desfaz a linha,
Sou a que nunca chora, a que nunca ri.

O poeta, diante do meu ar severo
De estátua altiva sobre o pedestal,
Consumirá seus dias em estudo austero;

Tenho para encantar este amante leal
Um espelho que faz cada coisa mais terna:
Meu olhar, puro olhar de claridade eterna.


La Beauté


Je suis belle, ô mortels! comme un rêve de pierre,
Et mon sein, où chacun s'est meurtri tour à tour,
Est fait pour inspirer au poète un amour
Éternel et muet ainsi que la matière.

Je trône dans l'azur comme un sphinx incompris;
J'unis un coeur de neige à la blancheur des cygnes;
Je hais le mouvement qui déplace les lignes,
Et jamais je ne pleure et jamais je ne ris.

Les poètes, devant mes grandes attitudes,
Que j'ai l'air d'emprunter aux plus fiers monuments,
Consumeront leurs jours en d'austères études;

Car j'ai, pour fasciner ces dociles amants,
De purs miroirs qui font toutes choses plus belles:
Mes yeux, mes larges yeux aux clartés éternelles!

Poema Baudelaire, tradução Pontual
Image Hosted by ImageShack.us

O Homem e o mar

Sempre o mar, homem livre, terás de adorar!
O mar é teu espelho; vês a tua alma
No rolar infinito de uma onda calma,
Tua mente é abismo amargo, como o mar.

Gostas de mergulhar fundo na tua imagem,
Abraçá-la, olho no olho, braço a braço,
E teu coração nem escuta o seu compasso
Ao som de um indomável lamento selvagem.

Sois ambos tenebrosos e também discretos:
Homem, ninguém conhece tuas profundezas;
Mar, ninguém sondou tuas íntimas riquezas,
Tão ciumentos sois e sempre tão secretos!

E, assim mesmo, há séculos incontáveis,
Lutais um contra o outro sem culpa ou piedade,
Tal é o vosso amor à morte, à crueldade,
Lutadores eternos, irmãos implacáveis!


L'Homme et la mer

Homme libre, toujours tu chériras la mer!
La mer est ton miroir; tu contemples ton âme
Dans le déroulement infini de sa lame,
Et ton esprit n'est pas un gouffre moins amer.

Tu te plais à plonger au sein de ton image;
Tu l'embrasses des yeux et des bras, et ton coeur
Se distrait quelquefois de sa propre rumeur
Au bruit de cette plainte indomptable et sauvage.

Vous êtes tous les deux ténébreux et discrets:
Homme, nul n'a sondé le fond de tes abîmes;
Ô mer, nul ne connaît tes richesses intimes,
Tant vous êtes jaloux de garder vos secrets!

Et cependant voilà des siècles innombrables
Que vous vous combattez sans pitié ni remords,
Tellement vous aimez le carnage et la mort,
Ô lutteurs éternels, ô frères implacables!

Poema Baudelaire, tradução Pontual
Image Hosted by ImageShack.us
Baudelaire, auto-retrato

A Musa doente

O que tens, pobre musa minha, esta manhã?
Povoam os teus olhos as visões noturnas
E vejo refletidas na pele malsã
A loucura e a dor, sombrias e soturnas.

O súcubo verdoso e o róseo satã
Melaram-te no cio que vertem das urnas?
O pesadelo, mão despótica e pagã,
Afogou-te no fundo de um falso Minturnas?

Quisera que banhada numa aura sã
Tivesses sempre a mente robusta e louçã
E teu sangue cristão fluísse sem fadigas

Na cadência do som das sílabas antigas,
Domínio do poeta pai do nosso clã,
Febo, e do senhor da messe, grande Pã.

La Muse malade

Ma pauvre muse, hélas! qu'as-tu donc ce matin?
Tes yeux creux sont peuplés de visions nocturnes,
Et je vois tour à tour réfléchis sur ton teint
La folie et l'horreur, froides et taciturnes.

Le succube verdâtre et le rose lutin
T'ont-ils versé la peur et l'amour de leurs urnes?
Le cauchemar, d'un poing despotique et mutin
T'a-t-il noyée au fond d'un fabuleux Minturnes?

Je voudrais qu'exhalant l'odeur de la santé
Ton sein de pensers forts fût toujours fréquenté,
Et que ton sang chrétien coulât à flots rythmiques,

Comme les sons nombreux des syllabes antiques,
Où règnent tour à tour le père des chansons,
Phoebus, et le grand Pan, le seigneur des moissons.

Poema Baudelaire, tradução Pontual
Image Hosted by ImageShack.us

O Cisne
A Victor Hugo

I

Andrômaca, penso em ti! O pequeno rio,
Pobre e triste espelho onde outrora brilhou tanto
A imensa majestade do teu desvario,
O falso Simóeis regado pelo teu pranto,

Fecundou num clarão minha fértil saudade,
Quando eu andava pelo novo Carrousel.
Foi-se a velha Paris (a forma da cidade
Muda mais rápido que o coração, infiel);

Só na memória revejo os velhos sobrados,
Pedaços de colunas, montes de argamassa,
O capim, o limo nos muros esverdeados
E o bricabraque reluzindo nas vidraças.

Ali havia noutros tempos um viveiro;
Lá eu vi, certa manhã, quando sob o céu
Frio e claro o Trabalho acorda e o nevoeiro
De pó sobe das ruas como negro véu,

Um cisne, que da gaiola havia escapado,
E, esfregando os pés no calçamento incerto,
Arrastava as plumas brancas no chão crestado.
Perto de um rego sem água, o bico aberto,

Banhava as asas na poeira, com aflição,
E dizia, sonhando com o lago natal:
"Água, quando choverás? Onde estás, trovão?"
Vejo a ave infeliz, mito estranho e fatal,

Apontar para o céu como o homem de Ovídio,
Para o céu irônico de um azul maldoso,
Torcendo a cabeça sobre o pescoço ofídio,
Como amaldiçoando o Todo Poderoso!

II

Paris muda! Mas na minha melancolia
Nada mudou! Velhas ruas, nova cidade,
Palácios, para mim tudo é alegoria
E nada pesa mais do que a minha saudade.

Diante do Louvre, uma imagem me oprime.
Penso no meu grande cisne, fora de si,
Como os exilados, ridículo e sublime,
Roído pelo desejo! E penso em ti,

Andrômaca, esposa de um herói bravio,
Escrava que Pirro tratou como um feitor,
Curvada em pranto sobre um túmulo vazio;
Mulher de Heleno, a viúva de Heitor!

Eu penso na negra, esquálida e doente,
Os pés na lama, o olhar perdido a buscar
Um coqueiral da África, inexistente,
Atrás do muro de névoa de um bulevar;

Penso em quem perdeu o que não se recupera
Jamais, jamais! Em quem mata a sede chorando
E mama na Dor como numa boa fera!
Nos órfãos famintos, como flores murchando!

Na floresta onde meu espírito se esconde
Estas lembranças soam por todos os cantos!
Penso nos náufragos, largados não sei onde,
Nos presos, nos vencidos!... E em outros, tantos!


Le Cygne
À Victor Hugo

I

Andromaque, je pense à vous! Ce petit fleuve,
Pauvre et triste miroir où jadis resplendit
L'immense majesté de vos douleurs de veuve,
Ce Simoïs menteur qui par vos pleurs grandit,

A fécondé soudain ma mémoire fertile,
Comme je traversais le nouveau Carrousel.
Le vieux Paris n'est plus (la forme d'une ville
Change plus vite, hélas! que le coeur d'un mortel);

Je ne vois qu'en esprit tout ce camp de baraques,
Ces tas de chapiteaux ébauchés et de fûts,
Les herbes, les gros blocs verdis par l'eau des flaques,
Et, brillant aux carreaux, le bric-à-brac confus.

Là s'étalait jadis une ménagerie;
Là je vis, un matin, à l'heure où sous les cieux
Froids et clairs le Travail s'éveille, où la voirie
Pousse un sombre ouragan dans l'air silencieux,

Un cygne qui s'était évadé de sa cage,
Et, de ses pieds palmés frottant le pavé sec,
Sur le sol raboteux traînait son blanc plumage.
Près d'un ruisseau sans eau la bête ouvrant le bec

Baignait nerveusement ses ailes dans la poudre,
Et disait, le coeur plein de son beau lac natal:
"Eau, quand donc pleuvras-tu? quand tonneras-tu, foudre?"
Je vois ce malheureux, mythe étrange et fatal,

Vers le ciel quelquefois, comme l'homme d'Ovide,
Vers le ciel ironique et cruellement bleu,
Sur son cou convulsif tendant sa tête avide,
Comme s'il adressait des reproches à Dieu!

II

Paris change! mais rien dans ma mélancolie
N'a bougé! palais neufs, échafaudages, blocs,
Vieux faubourgs, tout pour moi devient allégorie,
Et mes chers souvenirs sont plus lourds que des rocs.

Aussi devant ce Louvre une image m'opprime:
Je pense à mon grand cygne, avec ses gestes fous,
Comme les exilés, ridicule et sublime,
Et rongé d'un désir sans trêve! et puis à vous,

Andromaque, des bras d'un grand époux tombée,
Vil bétail, sous la main du superbe Pyrrhus,
Auprès d'un tombeau vide en extase courbée;
Veuve d'Hector, hélas! et femme d'Hélénus!

Je pense à la négresse, amaigrie et phtisique,
Piétinant dans la boue, et cherchant, l'oeil hagard,
Les cocotiers absents de la superbe Afrique
Derrière la muraille immense du brouillard;

A quiconque a perdu ce qui ne se retrouve
Jamais, jamais! à ceux qui s'abreuvent de pleurs
Et tettent la Douleur comme une bonne louve!
Aux maigres orphelins séchant comme des fleurs!

Ainsi dans la forêt où mon esprit s'exile
Un vieux Souvenir sonne à plein souffle du cor!
Je pense aux matelots oubliés dans une île,
Aux captifs, aux vaincus! ... à bien d'autres encor!



Poema de Baudelaire, tradução Pontual
Image Hosted by ImageShack.us
Baudelaire, auto-retrato sob a influência do haxixe

Paisagem

Quero, para compor meu casto e puro verso,
Deitar perto do céu, sorver o Universo
E, vizinho dos sinos, em sonho escutar
Seu glorioso hino ecoando no ar.
Do alto da mansarda, apoiado à janela,
Verei a oficina alegre e tagarela,
Torres e chaminés, os mastros da cidade,
E o vasto céu que faz pensar na eternidade.

Como é doce entre as brumas do poente ver
Uma estrela no azul, uma luz acender,
O rio de carvão subir ao firmamento
E a lua derramar seu alvo encantamento.
Verei a primavera, verão e outono,
E ao chegar o inverno do manto de sono
As portas e as janelas todas trancarei
Para na noite erguer meus palácios de rei.

Agora horizontes azulados vejo,
Jardins e jatos d'água a chorar no azulejo,
Beijos, passarinhada a cantar noite e dia,
E tudo de infantil que houver na Poesia.
Em vão a tempestade estremece a vidraça;
Imerso no poema eu até acho graça
Pois cá na escrivaninha revivo o prazer
De evocar o Verão pelo simples querer
E produzir um sol no meu coração. Rindo,
Minha mente febril inventa um dia lindo.


Paysage

Je veux, pour composer chastement mes églogues,
Coucher auprès du ciel, comme les astrologues,
Et, voisin des clochers, écouter en rêvant
Leurs hymnes solennels emportés par le vent.
Les deux mains au menton, du haut de ma mansarde,
Je verrai l'atelier qui chante et qui bavarde;
Les tuyaux, les clochers, ces mâts de la cité,
Et les grands ciels qui font rêver d'éternité.

II est doux, à travers les brumes, de voir naître
L'étoile dans l'azur, la lampe à la fenêtre,
Les fleuves de charbon monter au firmament
Et la lune verser son pâle enchantement.
Je verrai les printemps, les étés, les automnes;
Et quand viendra l'hiver aux neiges monotones,
Je fermerai partout portières et volets
Pour bâtir dans la nuit mes féeriques palais.
Alors je rêverai des horizons bleuâtres,
Des jardins, des jets d'eau pleurant dans les albâtres,
Des baisers, des oiseaux chantant soir et matin,
Et tout ce que l'Idylle a de plus enfantin.
L'émeute, tempêtant vainement à ma vitre,
Ne fera pas lever mon front de mon pupitre;
Car je serai plongé dans cette volupté
D'évoquer le Printemps avec ma volonté,
De tirer un soleil de mon coeur, et de faire
De mes pensers brûlants une tiède atmosphère.


Poema de Baudelaire, tradução Pontual
Image Hosted by ImageShack.us

O Rebelde

Desce um Anjo do céu, um raio que fulmina,
Enfurecido agarra os cabelos do ateu
E diz ao sacudi-lo: "Segue a lei divina!
(Pois sou teu Anjo bom, ouviste?) Quero eu!

"E sem fazer careta trata já de amar
O mau, o pobretão, o torto, o anormal,
Preparando um tapete pra Jesus passar
Com tua caridade, piso triunfal.

"Isto é que é amor! Antes que fiques tinhoso
Na glória de Deus deixa renascer teu gozo;
É a volúpia boa de eterna atração!"

O Anjo, castigando tanto quanto ama,
Torturas de Titã sobre o ímpio derrama;
E o maldito responde; "Não quero! Não!"



Le Rebelle

Un ange furieux fond du ciel comme un aigle,
Du mécréant saisit à plein poing les cheveux,
Et dit, le secouant: "Tu connaîtras la règle!
(Car je suis ton bon Ange, entends-tu?) Je le veux!

"Sache qu'il faut aimer, sans faire la grimace,
Le pauvre, le méchant, le tortu, l'hébété,
Pour que tu puisses faire à Jésus, quand il passe,
Un tapis triomphal avec ta charité.

"Tel est l'Amour! Avant que ton coeur ne se blase,
À la gloire de Dieu rallume ton extase;
C'est la volupté vraie aux durables appas!"

Et l'Ange, châtiant autant, ma foi! qu'il aime,
De ses poings de géant torture l'anathème;
Mais le damné répond toujours: "Je ne veux pas!"



Poema de Baudelaire, tradução Pontual
Image Hosted by ImageShack.us
Procure Baudelaire neste quadro de Manet. Para uma reprodução maior clique aqui.
Uma dica: Baudelaire está na sombra, de perfil, e o desenho abaixo é um estudo feito por Manet para o perfil de Baudelaire no quadro.

Image Hosted by ImageShack.us


A Voz

Do meu berço a biblioteca era vizinha,
Babel onde ciência, história, literatura,
Tudo, poeira grega e cinza latina,
Se lia. Eu tinha de um in-fólio a altura.
Duas vozes ouvia. Uma, embusteira,
Dizia: "A Terra é uma doce sobremesa;
Posso (e teu prazer seria sem fronteira!)
Arranjar-te um apetite de igual grandeza".
E a outra: "Vem! vem viajar na fantasia,
Além do possível, além do conhecido".
E esta cantava como o vento, e ria,
Fantasma sussurrante apenas pressentido
Que apavora o ouvido enquanto o afaga.
Eu te respondi: "Sim! doce voz!". É de então
Que data o que posso chamar de minha chaga,
Minha fatalidade. Atrás da ilusão
Da existência imensa, no fundo breu do abismo,
Vejo claramente outros mundos, exatos.
Vítima da lucidez e do imobilismo,
Arrasto serpentes que mordem meus sapatos.
E tal como um profeta, desde aqueles tempos
Amo com ternura o deserto e o mar hostil;
Rio nos enterros, choro nos casamentos,
No vinho mais amargo acho um gosto sutil;
Onde os outros vêem fatos, só vejo mentira,
Olhos postos no céu, não vejo o vão à frente.
Mas a Voz me consola e diz: "Sonha e delira;
O sábio não sonha tão bem quanto o demente!"


La Voix

Mon berceau s'adossait à la bibliothèque,
Babel sombre, où roman, science, fabliau,
Tout, la cendre latine et la poussière grecque,
Se mêlaient. J'étais haut comme un in-folio.
Deux voix me parlaient. L'une insidieuse et ferme,
Disait: "La Terre est un gâteau plein de douceur;
Je puis (et ton plaisir serait alors sans terme!)
Te faire un appétit d'une égale grosseur."
Et l'autre: "Viens! oh! viens voyager dans les rêves,
Au delà du possible, au delà du connu!"
Et celle-là chantait comme le vent des grèves,
Fantôme vagissant, on ne sait d'où venu,
Qui caresse l'oreille et cependant l'effraie.
Je te répondis: "Oui! douce voix!" C'est d'alors
Que date ce qu'on peut, hélas! nommer ma plaie
Et ma fatalité. Derrière les décors
De l'existence immense, au plus noir de l'abîme,
Je vois distinctement des mondes singuliers,
Et, de ma clairvoyance extatique victime,
Je traîne des serpents qui mordent mes souliers.
Et c'est depuis ce temps que, pareil aux prophètes,
J'aime si tendrement le désert et la mer;
Que je ris dans les deuils et pleure dans les fêtes,
Et trouve un goût suave au vin le plus amer;
Que je prends très-souvent les faits pour des mensonges,
Et que, les yeux au ciel, je tombe dans des trous.
Mais la voix me console et dit: "Garde tes songes;
Les sages n'en ont pas d'aussi beaux que les fous!"


Poema de Charles Baudelaire, tradução de Jorge Pontual

Sunday, February 26, 2006

Image Hosted by ImageShack.us

A Cabeleira

Ah, tosão se enroscando no seio! Tonteira!

Ah, ondas! Ah, perfume bom de embriagar!

Fonte! Gozo! Amando na alcova inteira,

Acordando lembranças tuas, cabeleira,

Quero como bandeira girar-te no ar!

África de suor, Ásia de almofada,

Toda terra distante, sonho de além-mar,

Vivem no fundo teu, floresta perfumada!

Se outro coração sobre música nada,

O meu, amor, no teu aroma quer nadar.

Quero ir onde gente e flor cheios de luz

Se espreguiçam sem fim nos climas tropicais;

Trança forte, és a onda que lá me conduz!

Mar de ébano, és um sonho que reluz,

De velas e marujos, mastros e fanais,

Um porto deslumbrante onde a alma leda

Vem sorver o perfume, o som e a cor,

Onde as naus deslizando no ouro e na seda

Abrem os amplos braços para a labareda

Do céu puro onde freme o eterno calor.

Vou meter a cabeça que o amor enfeitiça

Neste negro oceano onde há outro a viver;

Minha mente sutil que o marulhar atiça

Saberá encontrar a fecunda preguiça,

Infinito balanço cheirando a prazer!

Cabeleira azulada, o céu curvado e fundo

Condensas no teu tom, escuro pavilhão;

Na penugem dos cachos do teu vasto mundo

Fico tonto com tantos cheiros e confundo

Odor de óleo de coco, almíscar, alcatrão.

Agora, sempre, minha mão na tua crina

Semeará safiras, pérolas e jade

Para que meu desejo aceites, ó divina!

Pois não és o oásis onde minha sina

É aspirar bem fundo o vinho da saudade?




La Chevelure

Ô toison, moutonnant jusque sur l'encolure!

Ô boucles! Ô parfum chargé de nonchaloir!

Extase! Pour peupler ce soir l'alcôve obscure

Des souvenirs dormant dans cette chevelure,

Je la veux agiter dans l'air comme un mouchoir!

La langoureuse Asie et la brûlante Afrique,

Tout un monde lointain, absent, presque défunt,

Vit dans tes profondeurs, forêt aromatique!

Comme d'autres esprits voguent sur la musique,

Le mien, ô mon amour! nage sur ton parfum.

J'irai là-bas où l'arbre et l'homme, pleins de sève,

Se pâment longuement sous l'ardeur des climats;

Fortes tresses, soyez la houle qui m'enlève!

Tu contiens, mer d'ébène, un éblouissant rêve

De voiles, de rameurs, de flammes et de mâts:

Un port retentissant où mon âme peut boire

À grands flots le parfum, le son et la couleur;

Où les vaisseaux, glissant dans l'or et dans la moire

Ouvrent leurs vastes bras pour embrasser la gloire

D'un ciel pur où frémit l'éternelle chaleur.

Je plongerai ma tête amoureuse d'ivresse

Dans ce noir océan où l'autre est enfermé;

Et mon esprit subtil que le roulis caresse

Saura vous retrouver, ô féconde paresse,

Infinis bercements du loisir embaumé!

Cheveux bleus, pavillon de ténèbres tendues,

Vous me rendez l'azur du ciel immense et rond;

Sur les bords duvetés de vos mèches tordues

Je m'enivre ardemment des senteurs confondues

De l'huile de coco, du musc et du goudron.

Longtemps! toujours! ma main dans ta crinière lourde

Sèmera le rubis, la perle et le saphir,

Afin qu'à mon désir tu ne sois jamais sourde!

N'es-tu pas l'oasis où je rêve, et la gourde

Où je hume à longs traits le vin du souvenir?

Poema de Charles Baudelaire, tradução de Jorge Pontual

Image Hosted by ImageShack.us

Boeuf Bourguignon

O prato é tradicional da Bourgogne e feito com vinho da região, ou seja, um pinot noir. Mas usei outro vinho, o Francis Ford Coppola Rosso, da Califórnia, que é ótimo, uma mistura de Cabernet, Zinfandel e Syrah. Coppola comprou a vinícola Niebaum com o dinheiro do primeiro Poderoso Chefão e hoje é um dos melhores produtores de vinho da Califórnia (além de fazer massas, molhos e ter resturantes ótimos na região de São Francisco). Recomendo a visita ao site dele, espetacular: Rubicon Estate.

A carne pode ser de segunda, mais barata. Fiz dois quilos e meio para oito pessoas. A carne é cortada em cubos de 4cm. Primeiro fritei os cubos de carne (em quatro levas), em manteiga, até ficar bem tostada por fora. Os cubos encolhem para 2,5 cm. Depois refoguei meia cebola e alguns dentes de alho e acrescentei a carne e uma garrafa do vinho tinto. Temperei com sal, pimenta do reino, ervas. Torresmo é opcional, mas eu gosto. Leva também uma cenoura grande e um aipo, picados. Tem quem acrescente tomate, mas eu não. Cozinha-se em fogo brando por uma hora e meia, até a carne ficar bem macia.

Pronta a carne, acrescentam-se cebolinhas brancas e champignons. As cebolas (duas dúzias), daquelas bem pequenas, são cozidas na manteiga por meia hora. Os champignons (três dúzias), daqueles brancos e pequenos, que podem ser picados ou só cortados ao meio, são acrescentados no fim, em cinco minutos ficam prontos.

Acompanhei com batata gratinada no forno. Cortei as batatas (um quilo) em fatias bem finas. Cozinhei as batatas num litro de leite fervendo, com ervas, noz moscada ralada na hora e uma colher de sopa de manteiga, por 10 minutos. Numa tigela onde esfreguei um dente de alho, coloquei metade das batatas. Por cima, uma xícara de creme de leite fresco bem batido misturado a uma xícara de queijo gruyère ralado. Enchi a tigela com o resto das batatas. Cobri com mais uma xícara de queijo ralado. Levei ao forno até gratinar (uma hora).

O mesmo vinho usado para cozinhar a carne acompanhou o jantar. Os convidados trouxeram outros vinhos do Coppola, da série Diamond: Claret, Merlot e Pinot Noir.

Ontem fiz algo que teria combinado, mas era muito trabalho para uma tarde só: Carciofi a la Giudea, alcachofras à judaica, um prato tradicional de Roma. São alcachofras bebês, daquelas mínimas, bem fechadas (se estiverem abertas não servem, já estão secas). Fiz duas dúzias. Primeiro retirei as folhas externas, mais duras, e cortei a ponta dos cabinhos. Cortei também as pontas das folhas com uma faca afiada. Virei cada alcachofrinha com o cabo pra cima, abri as folhas e apertei sobre a bancada para abri-las um pouco mais, com cuidado para não quebrá-las. Depois temperei com sal e pimenta. Em óleo quente mas não muito, até uma altura de três centímetros numa frigideira funda, fritei as alcachofras, virando de vez em quando até ficarem macias. Depois escorri e de novo apertei cada uma na bancada para abrir mais.
No óleo agora muito mais quente, as alcachofras voltaram para a frigideira para a fritura final. Joguei gotas de água fria, de longe para não respingar gordura em mim, para elas ficarem bem tostadas. Depois de escorridas, servi as alcachofrinhas fritas ainda bem quentes (não podem ser requentadas nem irem para a geladeira). Tempera-se na mesa com limão. É uma maravilha, especialmente acompanhando o enterro dos ossos do boeuf bourguignon.

Saturday, February 25, 2006

Image Hosted by ImageShack.us

OBRIGADO "JUSTIÇA"
Fritz Utzeri (publicado em edição extra do jornal Montbläat)

A decisão do Supremo Tribunal Federal, dando aos criminosos que cometem crimes hediondos o direito de reduzir suas penas, cai para a opinião pública, nestes tempos de violência, como um tapa na cara. Seqüestradores que assassinam suas vítimas, traficantes, estupradores, pedófilos, como o pastor que ganhou o “direito” de voltar a aliciar crianças, agradecem enternecidos ao STF. Criminosos como o menor (17 anos) que há poucas semanas violentou um menino de três anos ficarão ainda mais seguros e abrigados pela lei para rir na cara de suas vítimas. No caso, a mãe – indignada e com certeza de que não teria a reparação devida – fez justiça com as próprias mãos e o homem comum, em geral pobre e vítima cotidiana dessa violência, tem a impressão de que velhas formas de justiça, como a Lei de Talião, são necessárias e justificadas. É o que lhes resta. Matar, fazer justiça pelas próprias mãos, passa a ser visto como ato legítimo e até necessário face à leniência cada vez maior de nossas leis. Invocam-se “direitos humanos” para defender a liberdade de um deputado que tinha como prática resolver suas pendências mandando esquartejar com moto-serra os seus adversários. Ninguém mais precisa preocupar-se em repetir o vai-e-vem ridículo de cadeias para trancafiar Fernandinho Beira-Mar. É só mandá-lo para casa, de onde poderá seguir traficando e executando os que disputam o coração de suas amásias, picando-os, pouco a pouco. Primeiro o nariz, depois as orelhas... Suzana Richthofen a rigor não deveria sequer ser julgada, afinal a coitadinha já passou um tempo na cadeia e convenhamos, matar pai e mãe é tão banal...
Juristas e a OAB se regozijam pelo absurdo. A maioria das coisas no Brasil é inconstitucional, a começar pelo salário mínimo, mas é nos criminosos que a autoridade pensa quando resolve ser purista. As cadeias brasileiras estão cheias de presos que sequer deveriam atravessar as portas de uma cela. São delitos menores como furtos, estelionato, lesão corporal (briga), falsidade ideológica... Para a maioria da massa carcerária penas sociais resolveriam, educariam mais e prestariam um serviço à sociedade em lugar de obrigá-la a manter verdadeiros chiqueiros humanos com presos ociosos, amontoados e não raro comandando o crime de dentro de suas celas.Mas para os crimes ditos hediondos (é preciso definir bem isso) as penas devem ser severas, duras. No Brasil sempre se fala na cadeia como um lugar para ressocializar o preso, recuperá-lo. Não se pode ser contra isso, (embora seja legítimo perguntar como será possível fazê-lo em nossas prisões), mas a pergunta é: O primeiro objetivo da Justiça ante um criminoso desses não deveria ser a punição? Cadê o castigo? Desde pequenos – criados num contexto moral cristão – aprendemos um conjunto de mandamentos e sabemos que o castigo para a desobediência a essas leis – dependendo da gravidade do crime (no caso pecado e dito mortal) – pode chegar até à nossa danação eterna no inferno (que deve ser um lugar bastante parecido com as cadeias brasileiras). Ora, se Deus – que é a essência mesma da misericórdia – estabeleceu esse tipo terrível de pena, a Justiça brasileira parece estar legislando em favor do Capeta. Não há castigo para o mal. O criminoso é visto como alguém que “sofre”. E as vítimas? Não estou defendendo prisão perpétua, pois não há condições de controlar esse tipo de preso num sistema como o nosso. Também não sou favorável à pena de morte. Mas acho razoável que o preso que estupra, seqüestra, mata, tortura, vicia crianças, ou as utiliza para dar vazão à sua psique destorcida, seja isolado da sociedade por um período mínimo de 20 anos. Isolado, mas não deixado no ócio e na promiscuidade dos Carandirus da vida. O preso deve ser acompanhado e avaliado, deve trabalhar, estudar, arrepender-se. Só assim poderá voltar ao convívio dos demais seres humanos. Direitos humanos, senhores juízes, valem primeiro para o Tim Lopes e depois para o Elias Maluco que, aliás, já deve estar se preparando para voltar para casa.
PS – E não digam que a garantia reside na decisão dos juízes. Com a corrupção de nosso Judiciário, equivale a entregar o destino das galinhas (nós) à raposa.

Concordo com o Fritz, menos numa coisa. Por que não discutir a pena de morte? Não sei se resolve, mas do jeito que as coisas estão, quem sabe? Aqui nos Estados Unidos, desde que a pena de morte foi reinstituída pela Suprema Corte em 1976, pouco mais de 1 mil criminosos foram executados. Eles mataram cerca de 2 mil vítimas. Não sei se isso explica a queda impressionante no número de homicídios nos Estados Unidos nestes 30 anos. A taxa de homicídios (é a estatística mais usada, dá o número de homicídios por cada 100 mil pessoas no país) caiu de 10 em 1980 para 5,6 em 2000 e continua caindo, voltando ao nível, ainda considerado alto para um país desenvolvido (no Canadá é 1,76), em que estava nos anos 50. Há muitos fatores além da pena de morte que explicam essa queda. Um deles é a legalização do aborto, em 1973, que permitiu às mães solteiras nos guetos evitar filhos. A taxa de homícidio entre os negros nos Estados Unidos ainda é de 23, ou seja, eles cometem homicídios quatro vezes mais do que a população em geral. São vítimas de discriminação racial, não há dúvida, mas por vários motivos, inclusive esse, cometem mais crimes. E a legalização do aborto, ao reduzir o número de jovens negros, contribuiu para a queda na criminalidade. É terrível, mas é um fato inegável (e estudado por economistas e estatísticos, não estou inventando). Não estou propondo a eutanásia nem o genocídio dos negros, mas a legalização do aborto sem dúvida reduz a possibilidade de que futuros criminosos venham a nascer. Do mesmo modo, a pena de morte tem algum efeito na redução da criminalidade mais grave, como os homicídios. Mas é difícil quantificar esse efeito. Pelo menos para as famílias das vítimas, inegavelmente (é só ouvir seus depoimentos, maciçamente a favor da pena de morte) traz algum alívio ver que o assassino de uma pessoa querida não ficou impune. De qualquer forma, mesmo os homicidas que não são condenados à morte nos Estados Unidos (a maioria deles), recebem penas de prisão perpétua ou penas muito longas. Ler hoje nos jornais brasileiros que, pela decisão do STF, um homicida cumprirá apenas 3 anos em "regime fechado" é trágico. E seria cômico, se não fosse trágico, ouvir (o audio está no site do Globo) o ministro do STF Marco Aurélio Mello dizer: "A sociedade pode ficar tranquila". Claro. Sabem qual era a taxa de homicídios no Brasil em 2002 (e certamente aumentou de lá pra cá)? Vinte e sete, 27! Perdemos para a Colômbia, com 59, e a África do Sul, com 75, mas ainda assim o ministro perdoe, não dá pra ficar tranquilo.

Alguns comentários sobre a decisão do STF:

Antonio Sergio Pitombo, advogado e especialista em direito penal
"Um dos erros da Lei de Crimes Hediondos foi impedir a progressão de regime. Gerava um trauma para o condenado pois o impossibilitava de ter esperança"

Jorge Damus Filho, 51 é administrador de empresas e pai do estudante Rodrigo Balsalobre Damus, 20, assassinado em 1999, no Morumbi, em São Paulo.
"É muito fácil achar que não ter direito à progressão de regime é inconstitucional dentro do STF, cercado por seguranças, com filhos morando no exterior e andando de carro oficial."

Bene Barbosa, é bacharel em direito e presidente da ONG Viva Brasil, frente contra o desarmamento
"Com essa decisão, mais de 30 mil criminosos vão para as ruas. No voto do ministro [do STF] Eros Grau ele diz que o cumprimento da pena em regime fechado é cruel e desumano. Cruel e desumano é o que esses criminosos fazem com a sociedade honesta"

Reinaldo Caffé, economista, é pai do estudante Felipe Silva Caffé, 19, assassinado junto com a namorada Liana Friedenbach, 16, em novembro de 2003, em Embu-Guaçu, na Grande São Paulo
"O que se observa é que a Justiça brasileira está cada vez mais frouxa. Na minha opinião, no Brasil, as leis não passam de piada e a Justiça é uma grande mentira"

Hélio Sécio Junior, presidente da Associação das Vítimas de Violência no Estado de São Paulo, que teve o filho de 29 anos assassinado há 10 anos (o assassino, zelador do prédio onde o rapaz morava, nunca foi preso):
"Mate que a justiça garante".

Sunday, February 19, 2006

Image Hosted by ImageShack.us

EM DEFESA DE JULIA CHILD

Anna Maria tem toda razão de reagir aos meus insultos invejosos. É claro que a blanquette dela é não só tradiconal como deliciosa e minha mulher Angela sem nenhuma dúvida continua considerando a da Anna muito melhor do que a que eu faço (embora seja verdade que Elaine Louie disse que nunca comeu uma tão boa quanto a minha, mas é claro que nunca provou a da Anna - e não estava com a faca no pescoço, como eu escrevi de brincadeira).

Mas apesar de toda a tradição de Mazamet e da Marraine tão encantadoramente descrita pela Anna Maria, preciso defender a criadora da receita da blanquette que eu faço, Julia Child. Não é, como a Anna Maria entendeu, uma receita do New York Times. A confusão veio do fato de que Elaine trabalha no jornal, onde aliás publicou a receita de feijoada da Angela, eleita uma das melhores receitas de 2004 e republicada no livro Best American Recipes of 2004.

Julia Child, née McWilliams em 1912, falecida em 2004, foi uma espiã americana durante a Segunda Guerra, no Ceilão, onde conheceu outro espião, Paul Child, com quem trabalhou no mesmo ramo na China. Os dois voltaram aos Estados Unidos onde se casaram em 1946. Paul tornou-se diplomata e o casal se mudou para Paris, onde Julia se formou na mais famosa escola de culinária de Paris, Le Cordon Bleu.

De volta aos Estados Unidos, Julia se dedicou a ensinar a cozinha francesa aos americanos. Seu livro Mastering the Art of French Cooking, 734 páginas, publicado em 1961, é até hoje um best-seller. Recentemente, uma jovem aqui de New York, Julie Powell, fez um blog contando a experiência de executar todas as receitas do livro de Julia ao longo de um ano, o que resultou num novo best-seller, Julie/Julia.

O programa de TV de Julia Child, The French Chef, estreou na tevê educativa americana em 1963 e está no ar até hoje, agora em reprises. Julia gravou o programa até morrer aos 91 anos. Hilariante, com uma voz aguda estranhíssima, extremamente alta (1m85) e curvada, com cabelos armados com laquê, desastrada com as panelas mas rigorosa em relação aos métodos e técnicas ancestrais da cozinha francesa, Julia se tornou uma das figuras mais populares da cultura americana, durante mais de 40 anos.

Seus 17 livros, e principalmente os programas de TV, ensinaram os americanos a comer e a cozinhar. Se deve a ela, em grande parte, a alta qualidade dos restaurantes nos Estados Unidos que se dedicam à culinária francesa. Ela criou um público exigente que sabe a diferença entre um molho béchamel e um vélouté (a base é a mesma, manteiga e farinha de trigo, mas o béchamel leva leite enquanto o vélouté leva o caldo do que ele acompanha, o da blanquette, por exemplo).

Quando Angela pendurou o avental há quatro anos, me vi numa situação difícil. Queria aprender a cozinhar, mas Angela não tem paciência para ensinar. Nossa vizinha Nelita Lécléry deu a solução: o último livro de Julia Child, Julia's Kitchen Wisdom. Em apenas 125 páginas, ela ensina todas as técnicas básicas para cozinhar qualquer coisa, carnes, peixes, legumes, ovos, sobremesas, tudo.

Julia é exigente. Há trechos em que ela lembra ao cozinheiro de primeira viagem que cozinha é trabalho, huile de coude como dizem os franceses - óleo de cotovelo. As receitas são em geral simples e rápidas, mas as melhores, como a da blanquette, são muito trabalhosas.

É claro que eu fiz uma brincadeira de péssimo gosto inventando que criei Daisy, minha própria vitela. Foi pura provocação. Mas Julia de fato recomenda assar ossos de vitela e depois fervê-los por quatro horas para fazer o caldo. Eu fiz isso uma vez e é uma maravilha. Mas sou preguiçoso, por isso já compro o caldo de vitela pronto na deli em frente de casa.

A diferença entre as outras blanquettes que eu comi e a da Julia Child é que o molho vélouté tem uma consistência cremosa e o sabor do prato é mais acentuado. Vitela é uma carne sem gosto, daí todo o segredo está no caldo e no molho - e, no caso da receita de Julia, nas cebolinhas e champignons que acompanham.

Enfim, a blanquette de Anna é maravilhosa e tem história mas a da Julia Child não fica muito atrás, num outro diapasão, talvez menos refinado mas igualmente válido. Certamente se Julia provasse a minha blanquette não aprovaria. Ela tinha um assistente, o francês Jacques Pépin, que acabou virando um chef famoso com seu próprio programa de TV. Os dois se encontraram poucos anos antes da morte de Julia para uma série de programas. Jacques fazia o diabo para agradar a mestra. Julia provava, dava um risinho, sacudia a cabeça e dizia apenas: "Está OK". Ela era fogo.

Esta semana vou fazer outro carro-chefe da Julia, o Boeuf Bourguignon. O embaixador Marcos de Vicenzi, um apreciador deste prato, diz que o meu é o melhor que ele já comeu. Aliás, Anna Maria, o presidente FHC anda dizendo por aí que a moqueca que eu fiz pra ele é a melhor que ele já comeu. Nossa, como eu sou patético!

Image Hosted by ImageShack.us
Image Hosted by ImageShack.us
Mazamet, terra da blanquette de Anna Maria

SUA BLANQUETTE É PATÉTICA
Anna Maria Ribeiro


Esta frase inusitada e pretendida como um insulto – pasmem - me foi dirigida por um amigo! Dizem, e nem sempre rezo por esta cartilha, mas dizem que pela boca dos amigos verdadeiros sabe-se a verdade. Neste caso embora se trate de um amigo de fé, tenho certeza e há muito tempo, a verdade não se revela. A bem desta verdade, tão invocada neste início, foi este meu amigo levado a esta espúria declaração pelo pecado capital da Inveja. Não admitindo se render à qualidade da blanquette de veau que faço há anos, e que ele só recentemente tentou executar, procurou denegri-la. Isto por que ele, misto de jornalista e cordon bleu nas horas vagas, orgulha-se de ter produzido uma que tem assinatura. Isto é, a receita da blanquette lá dele foi publicada em veículo de mundial circulação. A minha não! Tem origem numa pequena cidade do sul da França onde os habitantes, mais afeitos ao patois que ainda se fala na região, não vêem (nem querem ver) suas receitas centenárias distribuídas ao nível mundial por um jornal americano. Aqui uma curiosidade que nada tem a ver com a blanquette: diz-se que nesta cidade quando o trem pára na estação o chefe, aos gritos, faz a seguinte declaração, fazendo soar a frase com um “tte” ao final das palavras: Mazamette! Cinq minuttes d’arrette. Bufettes derière les cabinettes. Mas voltando a Mazamet e à minha blanquette: faz tempo que recém casada me foi ensinada a receita por uma habitante desta cidade coincidentemente, madrinha de meu marido. Marraine, como a chamávamos, era uma extraordinária cozinheira, como o eram Mami (minha sogra) e Tatá Lili (sua irmã), todas nascidas e criadas em de Mazamet. Entre elas fizeram um pacto para formar esta bugre que vos fala nas artes da cozinha. Devo a elas a maneira por que hoje me desembrulho neste departamento. Entre citações de Proust e de Pierre Loti passei horas tentando acertar, sob a severa orientação das três – acreditem - o ponto e a forma exata de um ovo poché!!. Minha sogra era tão requintada que em sua cozinha havia uma tesoura que era usada única e exclusivamente para cortar os fiapos deste ovo dotando-o de uma forma mais que perfeita. Não consegui chegar a isto. Quem sabe quando eu ficar grande... Todas as vezes que tento fazê-lo soam em meus ouvidos as exclamações: Voyons! Il faut faire attention, ma petite! Comme tu est maladroite! Conheci meu marido tinha eu uns 7 anos. Naquela época ele não me encantou nem um pouco! Ao contrário era um garoto chatíssimo que tinha um pônei (também sofri de inveja, meu querido. È terrível!) e se vestia como o Pequeno Príncipe de quem tinha os cabelos louros, lisos e revoltos. Mas mesmo tendo que aturá-lo eu ia constantemente a seu sítio em Miguel Pereira para onde eu me sentia irresistivelmente atraída por um sanduíche de pão quente com uma barra de chocolate que me era oferecido por aquela que mais tarde atenderia pela denominação de sogra. E, delícia das delícias, por um copo de vinho misturado com água e açúcar que me era oferecido no almoço. Outro parêntese: o sítio chamava-se Lustalu que quer dizer casa pequena em patois. E foi em Lustalu, muitos anos depois, que a blanquette fez parte de minha pos-graduação. Não que fosse complicada a confecção. Mas revestia-se de uma importância conferida pela tradição construída em centenas de anos. E é aí que a coisa pega para este meu amigo. A minha blanquette tem história. Tem passado. Gerações e gerações a degustaram. Tem berço, querido! Fico imaginando o que ocorrera com você quando souber que faço uma sauce aïolli digna do Olimpo. Além do pecado da inveja vai incorrer no da Ira? Praza aos céus que não porque te quero digno do Paraíso e pecado mortal é coisa séria! Para piorar a situação a mulher de meu amigo gosta mais de MINHA blanquette! Disto não sou responsável embora seja realmente muito melhor. Sei que a esta altura ele (e possivelmente algum leitor que ainda gentilmente tem ânimo para ler esta enxurrada de crônicas que produzo) vai pensar que estou incorrendo no pecado do Orgulho. Longe disto. Sou até humilde, mas é fato comprovado que MINHA blanquette é muitíssimo melhor. Para ser justa, considerando o elenco de Pecados Capitais, é possível ela faça com que os comensais incorram em pelo menos três outros deles: a gula, a luxúria e a preguiça. No primeiro ao comerem em demasia não conseguindo parar depois que a fome foi saciada; no segundo ao sentirem um prazer proibido que vai muito além do gustativo; e no terceiro depois derrubados numa confortável poltrona após sua ingestão. Não espero e nem exijo uma retratação de meu amigo. Sou magnânima e compreendo perfeitamente sua explosão que poderia ter sido minha caso minha blanquette fosse inferior à sua. Tenho a certeza que mesmo sendo infinitamente melhor, continuaremos amigos até o fim de nossos dias. Provavelmente até o fim dos meus porque sou muitíssimo mais velha. Mas até lá, e pela eternidade, lego aos meus descendentes como uma herança a certeza de que MINHA blanquette é de fato melhor do que a dele. Deixo de registrar aqui a resposta que seria digna de sua imprecação, título desta, porque não fica bem uma senhora de minha idade, aos gritos, como ele o fez, proferir: Patética é a...

Saturday, February 18, 2006

Image Hosted by ImageShack.us
Daisy antes...

Image Hosted by ImageShack.us
e depois.

Blanquette de veau

Minha blanquette de veau é a melhor que já foi feita e embora certas pessoas, tais como a Anna Maria, digam o contrário, é inegável.
Senão vejamos.
Quando eu era pequeno, minha avó Thérèse fazia Blanquette de Veau pra mim. Eu pegava dois ônibus para ir a Copacabana comprar a vitela no único açougue que a minha avó aprovava. Era uma delícia.
Infelizmente minha avó não deixou nenhuma receita escrita.
Mas a grande mestra americana da cozinha francesa, Julia Child, tem uma receita de Blanquette de Veau que eu sigo com grande (ouviu Anna Maria?), GRANDE sucesso.
Começa-se por encontrar uma vitela alimentada a leite materno.
Felizmente aqui nos Estados Unidos isso é fácil.
É o país do "do it yourself", e por isso há fazendas onde o visitante pode colher abóboras ou framboesas e criar sua própria vitela.
Daisy nasceu sob os meus cuidados (ao custo de 300 dólares!), uma linda vitelinha rosada. Três vezes por semana viajei (de trem) até a fazenda ao norte de New York para visitar Daisy e garantir que ela se alimentasse exclusivamente do leite materno.
Daisy me olhava com seus enormes olhos lacrimejantes e eu via nela a própria Julia Child, me dizendo, "milk fed veal", vitela alimentada a leite.
Um dia, cheguei à fazenda e Daisy tinha partido, para sempre. Me entregaram um saco de plástico com carne, e outro com ossos.
Seguindo a receita de Julia, botei os ossos de Daisy numa bandeja em forno quente, e depois de uma hora transferi os ossos para uma panela com água e ervas. Durante quatro horas, fervi aquilo tudo, até fazer um caldo bem grosso.
Cortei a carne rosada da minha Daisy em cubos de cinco centímetros e botei em água fervente até sair toda a espuma. A carne de vitela dá um monte de espuma. É preciso escumar tudo com uma escumadeira.
Depois escorri e enxaguei a carne e lavei a panela. Em seguida, cobri a carne com o caldo e acrescentei uma cebola picada, uma cenoura idem e um aipo também. Salsa, cebolinha. Deixei aquilo tudo ferver (fervura baixa, em francês se chama mijoter) por uma hora e meia.
Enquanto isso, preparei as cebolinhas (aquelas brancas, minúsculas), fervidas na água, depois descascadas e cozidas num pouco de água e manteiga por meia hora, os cogumelos (cortados e fervidos), e o molho velouté.
O molho é simples: em duas colheres de sopa de manteiga fervendo, cozinham-se três colheres de sopa de farinha de trigo peneirada. Quando ferver, acrescenta-se algumas colheres do caldo da blanquette.
Quando a carne fica macia (é só enfiar o garfo), escoa-se o caldo, separam-se os legumes e joga-se a carne no molho velouté com os champignons e as cebolinhas. Salga-se e apimenta-se a gosto.
Tem melhor? Duvido.
Luanda

Chega de racismo, ódio, guerra. Vamos falar de música. Quero celebrar aqui o casamento da minha cunhadinha querida, a cantora Luanda Cozetti, com o parceiro dela, o baixista Norton Daiello. Os dois estão vivendo em Portugal onde lançaram um ótimo CD, Couple Coffee. Enquanto o disco não chega ao Brasil curtam algumas faixas.

Chovendo na roseira
Pastorinhas
Último desejo
Filosofia
Dindi

Image Hosted by ImageShack.us

Céu, tão grande é o céu, e um bando de nuvens que passam ligeiras. Pra onde elas vão? Ah, eu não sei, não sei...

Friday, February 17, 2006

Mais Luanda

Já que o CD tem que ser importado de Portugal, seguem mais algumas faixas geniais de Couple Coffee (o título esquisito é o do show que o casal fazia num café no Rio antes de se mudar para Portugal). Os arranjos são todos de Luanda e Norton.

Gago apaixonado (Noel)
Estrada do sol (Tom/Dolores Duran)
Tipo zero (Noel)
Cobras e lagartos (Hermínio Bello de Carvalho / Sueli Costa)
É feio (Bill Carey/Carl Fisher/Marco Proença) c/ J.P. Simões

Wednesday, February 15, 2006

INCIDENTE POLICIAL MILITAR

Anna Maria Ribeiro

Faz tempo um delegado de polícia contou-me este incidente como verdade verdadeira por ele vivida quando investigador. Rolava o ano de 1969, auge da repressão. Um senhor entra numa delegacia da Zona Sul e autoritário exige ser atendido pelo delegado, o que é dificultado por um mal humorado escrivão. O irritado tom de voz do senhor chega aos ouvidos do comissário que aparece aos gritos: "Tá pensando que isto aqui é casa da mãe Joana?!" O apopléctico senhor parece que vai dar uma de "sabe com quem está falando", mas se contém. Puxa o comissário para um aparte e apresenta-se em segredo: é o general XX, famoso por suas ações contra-terrorismo. Cheio de mesuras o comissário apressa-se em conduzi-lo ao delegado. Um mutismo inexplicável ataca o general na presença do delegado que imagina que o militar ali está para solicitar a colaboração da polícia para estourar um aparelho e perde-se num discurso laudatório às gloriosas Forças Armadas na defesa da ordem e dos poderes constituídos. "Estes terroristas têm mais é que ser exterminados sem dó nem..." O general interrompe e pede a saída do comissário. É indispensável o maior sigilo. O delegado ordena a saída do humilhado comissário e aguarda a honrosa demanda que lhe fará o general. Este depois de muito pigarrear e hesitar termina por declarar que ali está para solicitar um flagrante de adultério: sua segunda mulher, muito jovem, o está traindo com um garotão. O delegado disfarça o divertimento que lhe causa a ridícula situação e contrito apresenta suas condolências pontuadas com "é lamentável, lamentável..." Sigilo haverá, é claro, mas as formalidades legais terão que ser cumpridas: é necessária a presença do escrivão e do comissário além de um investigador e da sua própria. Mas fique o general tranqüilo. Ele cuidará para que nada transpire dentro ou fora da delegacia. O general informa que irá participar da diligência e que embora a presença dos demais seja exigida deverão todos manter os olhos baixos em respeito a ele e àquela que apesar de tudo ainda é sua mulher. O delegado com tudo concorda. Agendados dia e hora de acordo com as informações fornecidas pelo general, este deixa a delegacia onde minutos depois explodem gargalhadas em todas as dependências. Não querendo mostrar favorecimento o delegado promove um sorteio para indicar qual dos investigadores terá o privilégio de participar do flagrante. O escrivão, sempre relegado a uma menor importância, está exultante. No dia e hora aprazados encontram-se todos na calçada, frente a um hotel em Copacabana. O delegado conduz a diligência como sendo uma operação de altíssimo risco. O comissário entra sozinho, encarregado da negociação necessária à obtenção da chave do quarto. Conseguida esta, volta à calçada. O delegado determina que os membros da diligência (incluindo o general) entrem no hotel a intervalos regulares para não chamar atenção. Deverão se encontrar na porta do quarto do pecaminoso casal. Risos dos funcionários de hotel acompanham a entrada do general evidenciando que o comissário compartilhou com eles a história. Exigindo sigilo, é claro! Murmurando em frente ao quarto o delegado ordena, severo: "olhos baixos, de preferência fechados! A presença de vocês é apenas para que se cumpra a formalidade. Ninguém olha!" O escrivão escandalizado tenta se insurgir. Se não olhar como é que vai lavrar o termo? O delegado rebate: "lavra-se de memória, cretino! É tudo sempre igual: nudus cum nuda in eodem lectum*!" Orgulhoso pela citação latina ele volta-se buscando o aplauso do general que furibundo diz apenas: "Cale-se, idiota!" Humilhado o delegado repassa a fúria a seus subordinados como se a frase no singular fosse um lapso do general: "Calem-se, idiotas!" A um sinal do delegado, o comissário gira a chave e entram todos de supetão no quarto onde o adultério está sendo consumado a pleno vapor. Bastam alguns segundos para que a jovem senhora reaja: ela põe-se em pé na cama exibindo sua esplendorosa nudez e aos gritos dirige impropérios ao general usando palavras que aqui eu não ousaria transcrever, mas que são furiosamente anotadas pelo escrivão que se não podia ver, podia ouvir. O delegado solene e respeitoso, olhando de banda, adianta-se tentando cobrir a nudez da jovem com um lençol. Ela se debate aplicandolhe uma saraivada de tapas certeiros. Empenhado em defender-se e de costas para o grupo que permanece de olhos baixos ele não vê que o general acaba de puxar uma enorme pistola apontando-a para o atlético rapaz que até aquele momento parecia estar se divertindo muito. Este, apavorado, percebe que sua vida está por um fio e rápido apossa-se do avantajado corpo do delegado, fazendo-o sentar-se em seu colo, usando-o como um escudo. O delegado em pânico se dá conta de que acaba de se transformar num alvo certeiro para o tresloucado general. E mandando para o espaço o respeito à patente, o delegado urra para a equipe: "SEGURA O CORNO! SEGURA O CORNO!"

* Nu com nua na cama – a modalidade mais grave de adultério segundo a legislação da época.

Texto publicado no jornal Montbäat.

VEJA COMO É FÁCIL ASSINAR E PAGAR O MONTBLÄAT

Circula as terças e sextas-feiras

Assinaturas: Anual - R$ 95,00 - Semestral - R$ 50,00 Trimestral R$ 25,00 e Mensal - R$ 10,00

Os pagamentos devem ser feitos em nome de: Federico Carlo Utzeri - CPF 160155767-15, nos seguintes bancos:

CEF - agência 0211 CC. - 00887174-0

Banco do Brasil - agência 0087-6 CC. - 19.836-6

Banco Itaú - agência 0706 CC. - 61801-4

Os depósitos no Bradesco serão feitos em nome de:

TECPRESS PRODUÇÕES LTDA. CNPJ 401 79590/0001 – 86

Bradesco – agência 1444 CC . – 030527-8

Basta efetuar o depósito num dos bancos e mandar um e-mail para flordolavradio@uol.com.br informando o valor, o número da operação e o Banco em que foi feito o depósito.

ASSINE AGORA!

Monday, February 13, 2006

Image Hosted by ImageShack.usImage Hosted by ImageShack.us

NA LINGUAGEM DAS FLORES E DAS COISAS CALADAS

Anna Maria Ribeiro

As palavras não são exatamente as de Beaudelaire. Mas o sentido aqui está. E por sentido estou falando do sentir e não de significância. Jorge Pontual, na tradução do poema, as transmudou bonitas, tão bonitas, para que eu pudesse, em minha língua começar a pensar, como agora. À medida que vou envelhecendo o som da linguagem das flores e das coisas caladas é ensurdecedor. Basta abrir a janela. A mangueira e abacateiro me falam de coisas incríveis. O verbo falar está mal colocado. Melhor seria dizer que me passam coisas incríveis. Isto vem aumentado com o tempo. No fim do ano que se foi e no início do ano que está vindo parece haver uma aceleração. A gente se pega lembrando o pra trás e imaginando o pra frente conduzida neste vai-vem pela memória e pela esperança. Uma aciona a outra, acrescentando, explicando. E é nestes momentos que a linguagem das flores e das coisas caladas pega forte. Porque estas não mudam com o tempo. A mangueira e o abacateiro crescem, sim, mas na essência, ao contrário de mim, são sempre os mesmos. E como me viram durante todos estes anos, eles imutáveis e eu mutante, me apresentam a mim mesma exibindo as muitas que fui e sugerindo as que serei. Não como numa foto. Mas como num filme. Desenrolando, sabem? Por que é nelas ficam guardados, intactos, os meus vários eus através dos tempos. Hoje se dá uma enorme importância às modificações físicas, numa tentativa às vezes vã e às vezes bem sucedida, tentando evitá-las e retardá-las. Não nego que estas tenham sua importância. E, sem dúvida, são mais visíveis. Mas as outras... Ah, as outras! São extraordinárias. E é delas que tenho notícia pela linguagem das flores e das coisas caladas. É possível que sejam caladas por discrição. Se falassem todo mundo iria escutar e isto poderia criar problemas. Sei lá eu quantas coisas poderiam revelar. Tudo que assistiram como mudas e isentas testemunhas. Ás vezes me vem a vontade absurda de perguntar à mangueira ou ao abacateiro: qual é seu ponto de vista sobre...? Por que é o que eles mais têm: pontos de vista que vão se ampliando à medida que crescem dominando com seu olhar o que há em volta. Pela janela me observam há anos. Sabem de coisas que ninguém sabe. Não que eu tenha segredos terríveis ou comportamentos espúrios quando só. Não mesmo. Mas as reflexões, os pensamentos, os sentimentos de dor e alegria e os gestos quando no “sozinha em casa” são muito diversos daqueles visíveis para o mundo lá fora. Quando só, sou mais eu, sem que haja a autocensura pra atrapalhar. Por que haveria? A mangueira e o abacateiro não censuram, não perguntam, não desenvolvem teorias a meu respeito. Apenas observam e carinhosamente escutam. Nenhuma intolerância se manifesta. Aceitam a mim, como aceitam a todos. Preconceito é coisa que nunca ouviram falar. Quer dizer, ouviram sim, pois tudo ouvem, mas não dão a menor bola. Vez por outra percebo um sorriso tolerante no mexer quase imperceptível de um galho me alertando: você realmente não quer isto, sua boba. E sempre estão certos. Na sua discrição me chamam à ordem. E eu me rendo como não me renderia a alguém falante. As coisas caladas sabem me fazer sorrir. E como são disponíveis! Estão lá sempre, a qualquer hora do dia ou da noite. Não é que estejam me esperando. Acho que não. Apenas estão lá. Não me cobram presença e talvez por isso mesmo eu as procure todos os dias. Várias vezes por dia, na verdade: quando acordo, quando vou dormir, quando chego em casa. O chegar não teria o efeito mágico que tem sem que eu as procure. Vez por outra é uma necessidade imperiosa procurá-las para que me ajudem a refletir sobre alguma coisa ou sobre alguém que me perturbou. Vai daí que me escutam, atentas. Nem sempre concordam com minhas avaliações e me alertam: você sentiria isto quando tinha quinze anos, criatura! Agora não tem muito sentido, não. Você não acha? Agradeço o alerta que provocaria em mim uma reação até agressiva se dita por alguém. Estão cobertas de razão, as coisas caladas. Tento explicar: esta adolescente fora de hora às vezes escapole. Sei lá eu de onde vem. E as coisas caladas se espantam: Ora, vem de você mesma, lembra? E é bom que ela ainda esteja por ai.Só que não deve aparecer fora de hora, pros outros. Tudo tem sua hora, né? Se tem, penso! Mas o melhor momento é sempre aquele em que alguma coisa dói. Dói pra valer. Então, as coisas caladas, que recriminaram minha volta à adolescência, com o maior carinho me fazem voltar à infância. E é no seu colo seguro e quente, sentindo uma carícia leve nos meus cabelos como Babá fazia, que escuto suas vozes que soam como as de anjos da guarda: passou... já passou...

O poema que levou Anna Maria a escrever esta crônica é Elevação