NA LINGUAGEM DAS FLORES E DAS COISAS CALADAS
As palavras não são exatamente as de Beaudelaire. Mas o sentido aqui está. E por sentido estou falando do sentir e não de significância. Jorge Pontual, na tradução do poema, as transmudou bonitas, tão bonitas, para que eu pudesse, em minha língua começar a pensar, como agora. À medida que vou envelhecendo o som da linguagem das flores e das coisas caladas é ensurdecedor. Basta abrir a janela. A mangueira e abacateiro me falam de coisas incríveis. O verbo falar está mal colocado. Melhor seria dizer que me passam coisas incríveis. Isto vem aumentado com o tempo. No fim do ano que se foi e no início do ano que está vindo parece haver uma aceleração. A gente se pega lembrando o pra trás e imaginando o pra frente conduzida neste vai-vem pela memória e pela esperança. Uma aciona a outra, acrescentando, explicando. E é nestes momentos que a linguagem das flores e das coisas caladas pega forte. Porque estas não mudam com o tempo. A mangueira e o abacateiro crescem, sim, mas na essência, ao contrário de mim, são sempre os mesmos. E como me viram durante todos estes anos, eles imutáveis e eu mutante, me apresentam a mim mesma exibindo as muitas que fui e sugerindo as que serei. Não como numa foto. Mas como num filme. Desenrolando, sabem? Por que é nelas ficam guardados, intactos, os meus vários eus através dos tempos. Hoje se dá uma enorme importância às modificações físicas, numa tentativa às vezes vã e às vezes bem sucedida, tentando evitá-las e retardá-las. Não nego que estas tenham sua importância. E, sem dúvida, são mais visíveis. Mas as outras... Ah, as outras! São extraordinárias. E é delas que tenho notícia pela linguagem das flores e das coisas caladas. É possível que sejam caladas por discrição. Se falassem todo mundo iria escutar e isto poderia criar problemas. Sei lá eu quantas coisas poderiam revelar. Tudo que assistiram como mudas e isentas testemunhas. Ás vezes me vem a vontade absurda de perguntar à mangueira ou ao abacateiro: qual é seu ponto de vista sobre...? Por que é o que eles mais têm: pontos de vista que vão se ampliando à medida que crescem dominando com seu olhar o que há em volta. Pela janela me observam há anos. Sabem de coisas que ninguém sabe. Não que eu tenha segredos terríveis ou comportamentos espúrios quando só. Não mesmo. Mas as reflexões, os pensamentos, os sentimentos de dor e alegria e os gestos quando no “sozinha em casa” são muito diversos daqueles visíveis para o mundo lá fora. Quando só, sou mais eu, sem que haja a autocensura pra atrapalhar. Por que haveria? A mangueira e o abacateiro não censuram, não perguntam, não desenvolvem teorias a meu respeito. Apenas observam e carinhosamente escutam. Nenhuma intolerância se manifesta. Aceitam a mim, como aceitam a todos. Preconceito é coisa que nunca ouviram falar. Quer dizer, ouviram sim, pois tudo ouvem, mas não dão a menor bola. Vez por outra percebo um sorriso tolerante no mexer quase imperceptível de um galho me alertando: você realmente não quer isto, sua boba. E sempre estão certos. Na sua discrição me chamam à ordem. E eu me rendo como não me renderia a alguém falante. As coisas caladas sabem me fazer sorrir. E como são disponíveis! Estão lá sempre, a qualquer hora do dia ou da noite. Não é que estejam me esperando. Acho que não. Apenas estão lá. Não me cobram presença e talvez por isso mesmo eu as procure todos os dias. Várias vezes por dia, na verdade: quando acordo, quando vou dormir, quando chego em casa. O chegar não teria o efeito mágico que tem sem que eu as procure. Vez por outra é uma necessidade imperiosa procurá-las para que me ajudem a refletir sobre alguma coisa ou sobre alguém que me perturbou. Vai daí que me escutam, atentas. Nem sempre concordam com minhas avaliações e me alertam: você sentiria isto quando tinha quinze anos, criatura! Agora não tem muito sentido, não. Você não acha? Agradeço o alerta que provocaria em mim uma reação até agressiva se dita por alguém. Estão cobertas de razão, as coisas caladas. Tento explicar: esta adolescente fora de hora às vezes escapole. Sei lá eu de onde vem. E as coisas caladas se espantam: Ora, vem de você mesma, lembra? E é bom que ela ainda esteja por ai.Só que não deve aparecer fora de hora, pros outros. Tudo tem sua hora, né? Se tem, penso! Mas o melhor momento é sempre aquele em que alguma coisa dói. Dói pra valer. Então, as coisas caladas, que recriminaram minha volta à adolescência, com o maior carinho me fazem voltar à infância. E é no seu colo seguro e quente, sentindo uma carícia leve nos meus cabelos como Babá fazia, que escuto suas vozes que soam como as de anjos da guarda: passou... já passou...
O poema que levou Anna Maria a escrever esta crônica é Elevação
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