EXPANSIVAS SÃO AS PESSOAS "TANGARELAS"
Anna Maria Ribeiro
O título não é meu. Foi “criado” por um estudante ao responder uma questão formulada num vestibular! Sei lá porque ao dela tomar conhecimento me aparece viva a imagem de uma menina “tangarela”, responsável por um dos mais extraordinários diálogos que mantive em viagem. O ano era 1969; e o percurso Rio/Brasília. Eu estava intranqüila. Na verdade estava mesmo era com medo. Com medo vivíamos todos naquela época. Em viagem piorava porque a qualquer momento a viagem poderia ter um destino sem volta.
Foi com alívio que observei a menina que se sentava a meu lado. Uns 18 anos, tipo hippie de fim de semana e muito bonita. O medo voltou ao ver sentar-se ao lado dela um empertigado senhor que vestia o terno como quem veste uma farda. A menina não parou de falar um só momento. Ia visitar o namorado e dele fiquei sabendo tudo. A desaprovação do senhor sobre qualquer manifestação dela era visível. Quase chegando a Brasília ela pediu um copo d’água para tomar um remédio. O olhar do senhor disse tudo: remédio, coisa nenhuma! E ele olhou ameaçador a inofensiva pastilha de dramamina sendo ingerida. Quem sabe o olhar assustou a menina que derrubou o copo soltando um sonoro “Merda!”. O terrível olhar transformou-se em uma escandalosa censura. Ela voltou-se para mim.
- Molhou a senhora?
- Graças a Deus, não! Vou direto para uma reunião. Não ia dar para trocar de roupa.
- E não podia ir molhada?
- Claro que não!
- É porque a senhora é formal. Eu não sou. Sou contra qualquer formalidade. Todas têm que acabar. Liberdade não existe quando existe formalidade.
O senhor inclinou-se para frente, olhar duro, exigindo de mim uma resposta à altura.
- Mas pelo menos uma formalidade você segue.
- Eu?! Imagina!
- Você só me chama de senhora. Isto é uma formalidade.
A menina me olhou com assombro.
- Ora, isso é...
- ... formalidade. Você está sendo mais formal que eu. Não chamei você de senhorita, não é?
O terreno estava se revelando perigoso e ela partiu para marcar território numa tentativa de me chocar. Vai daí que declarou agressiva:
- Sou pelo amor livre. O que é que a sen.... que você acha disto?
- Acho que não pode ser de outro jeito. Quem é que pode ser a favor de um amor não livre? Todo amor é livre. Tem que ser.
- Não é nada disso. Eu estou dizendo que... que... vou pra cama com qualquer um que me dê vontade.
Olhei para o apopléctico general (devia ser um). Este homem vai ter um enfarte, pensei. Voltei-me para a menina.
- Ah! É isso! Mas me diz uma coisa: o que é tem isto a ver com amor?
- Acho que a sen... que você não está entendendo nada. Eu vou explicar. A gente...
- Precisa explicar não. Eu entendi perfeitamente. Você vai para cama com qualquer um que lhe dê na telha. Tudo bem.
A menina se assombra e o general bufa em minha direção.
- Tudo bem como?!!!
- Tudo bem, se é isto que você quer e gosta. A minha discordância é que isto seja amor. É inviável. Não dá tempo.
- Não dá tempo de que?!!!
- De amar, ora. Precisa um mínimo de tempo pra isso, você não acha? É a mesma coisa que você olhar um prato de comida que nunca comeu e dizer: como isto é gostoso!
A menina me olhou insegura e o general com horror.
- Vai dizer que eu não posso olhar o prato e pensar que é gostoso.
- Claro que pode. E até deve, sabe? Mas continua a não ser amor. É atração. Mas vocês dizem tesão, não é?
O General estrebuchou na cadeira acompanhado pela trilha musical do grito da menina.
- Caramba! Você tem filhos?
- Tenho. A mais velha deve ter sua idade.
- E você é capaz de dizer uma coisa destas para ela?
- Se ela achar que amor é isto vou dizer uma coisa destas, sim.
A “tangarela” emudeceu, rosto bonito refletindo confusão enquanto o rosto crispado do General procurava furiosamente um motivo para me enquadrar como uma ameaça à segurança nacional. Vai ver era um “legalista” porque naquela época motivo não era necessário. Para sorte minha, não encontrou. Já em pé, saindo, a menina “tangarela” sorriu para mim. Um sorriso doce, bonito de se ver.
- Deve ser bom ser sua filha. Vou dizer uma coisa que você vai entender: eu amo meu namorado. Sou livre então, né?
Também sorri ao responder:
- Com certeza, meu bem!
M
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