Thursday, February 09, 2006
Recrutando Hitler
David Brooks (publicado pelo New York Times em 9/2/2006)
(o título em inglês, Drafting Hitler, é um jogo de palavras: to draft é recrutar e também desenhar)
Vocês querem saber como nós nos sentimos. Vocês da Liga Árabe Européia publicaram um cartum de Hitler na cama com Anne Frank (reproduzido acima) para que nós no Ocidente pudéssemos entender como vocês ficaram ofendidos com os cartuns dinamarqueses. Vocês no jornal iraniano Hamshahri estão fazendo um concurso de cartuns sobre o Holocausto, também para que a gente saiba como vocês se sentem.
Bom, eu vi o cartum de Hitler com Anne Frank: os dois acabam de fazer sexo e Hitler diz a ela, "Escreva isso no seu diário, Anne". Mas eu ainda não sei como vocês se sentem. Ainda não sinto vontade de queimar embaixadas e decapitar pessoas ou pedir a Deus ou Bin Laden que extermine meus inimigos. Ainda não sinto a mesma raiva que vocês. Não me sinto ameaçado por um cartum debilóide, mesmo de tanto mau gosto quanto este.
No início eu simpatizava com sua raiva contra os cartuns dinamarqueses porque é falta de educação tripudiar sobre os símbolos religiosos dos outros. Mas quando a raiva se espalhou e a questão se tornou mais cósmica, muitos de nós no Ocidente fomos lembrados de como é vasto o abismo entre vocês e nós. Fala-se mais do que nunca sobre um choque de civilizações. Não temos apenas idéias diferentes; temos uma relação diferente com as idéias.
Nós no Ocidente nascemos num mundo que reflete o legado de Sócrates e a ágora. No nosso mundo, imagens, estatísticas e argumentos voam em todas as direções. Há filmes e blogs, livros e sermões. Há o profundo e o vulgar, o elevado e o baixo.
No nosso mundo passamos o tempo peneirando e medindo, jogando fora o bobo e ofensivo, mandando por email o inteligente e incisivo. Visamos, nas palavras de Michael Oakeshott, a viver no meio de uma conversa - "uma interminável aventura intelectual improvisada na qual, pela imaginação, entramos numa variedade de modos de entender o mundo e nós mesmos e não nos desconcertamos com as diferenças nem ficamos desapontados com a falta de conclusões".
Acreditamos no progresso e no crescimento pessoal. Nadando nessas rajadas de pontos-de-vistas, enfrentando fatos desagradáveis, tentamos chegar cada vez mais perto do entendimento.
Mas vocês têm outro caminho. Quando digo vocês, não quero dizer muçulmanos. Não quero dizer os genuínos estudiosos islâmicos. Quero dizer Islamistas (nota: em inglês o termo se aplica aos militantes radicais muçulmanos). Quero dizer jovens que receberam boa educação no Ocidente mas recuaram com desgosto frente à falta de conclusões e ao caos da nossa conversa. Vocês se retiraram da ágora para uma versão exagerada da pureza islâmica.
Vocês enquadram o contraste entre o mundo de vocês e o nosso com uma dureza que nós, de fora, nunca ousaríamos ter. Em Londres os manifestantes levavam cartazes com dizeres, "Vá para o inferno, liberdade", "Exterminem os que ridicularizam o Islã", "Preparem-se para o verdadeiro Holocausto" e "Europa, você pagará, seu 11 de setembro está a caminho". Em Copenhague, um imam declarou, "no Ocidente, a liberdade de expressão é sagrada; para nós, o profeta é sagrado"- como se os dois fossem necessariamente opostos.
Nossa mentalidade é progressista e racional. A de vocês é pré-Iluminismo e mitológica. Na visão de mundo de vocês, a história não anda para a frente através de uma compreensão gradual. Na visão de mundo de vocês, a história se resolve num conflito apocalíptico entre o jihadista sobrenaturalmente puro e o judeu sobrenaturalmente maligno.
Vocês se agarram a qualquer migalha - até um cartum de meses atrás de um obscuro jornal dinamarquês - para provarem a si mesmos que o judeu e o cruzado estão na ofensiva, que o confronto apocalíptico é iminente. Vocês inventam histórias primitivas - como a de que os judeus matam crianças para tirar sangue (nota: cartuns com esse tema são constantemente publicados no mundo islâmico) - para reforçar a imagem que fazem do Mal judaico. Vocês negam o Holocausto porque se os judeus fossem tão poderosos quanto vocês dizem não teriam permitido que acontecesse.
No meu mundo, as pessoas buscam a verdade, cada uma do seu jeito. No mundo de vocês, os fiéis e os infiéis lutam pela sobrevivência, e palavras e idéias e cartuns não passam de armas nessa guerra.
Então, é claro, o que começou na Dinamarca acaba para vocês em Hitler, o Holocausto e o Judeu. Mas na reação exagerada desta última semana, vocês mostram que estão na defensiva. A democracia está chegando à sua região, e a democracia leva consigo a conversa. Líderes majoritários como o Grande Aiatolá Ali al-Sistani (líder dos xiitas do Iraque) estão abraçando a democracia e denunciando a violência de vocês como "equivocada e opressora".
Vocês fundamentalistas se transformaram numa superpotência do desequilíbrio, exigindo nossa atenção semana após semana. Mas não é fácil intimidar pessoas a ficarem caladas para sempre, embatucar a conversa e trancar o mundo numa guerra épica que só vocês querem. Não compartilhamos a raiva de vocês, mas entendemos o seu pânico.
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