Thursday, May 11, 2006

O GRANDE INQUISIDOR
(o jovem ateu Ivan fala do poema que está escrevendo, em conversa com o irmão Aliocha, monge noviço)

- É preciso, sob o ponto de vista literário, que o meu poema tenha um preâmbulo. A acção passa-se no século XVI; bem sabes que era costume, nesta época, fazer intervir nos poemas os poderes celestes. Não falo de Dante(1). Em França, os «clercs de la basoche»(2) e os monges davam
representações em que punham em cena Nossa Senhora, os anjos, os santos, Cristo e Deus. Eram espectáculos ingénuos. Na Nossa Senhora de Paris, de Vítor Hugo, o povo é convidado, no tempo de Luís XI, em Paris, e em honra do nascimento do Delfim, para uma representação edificante e
gratuita: O Bom Juízo da Sagrada e Graciosa Virgem Maria. Neste mistério aparece a própria Virgem a pronunciar o seu «bom Juízo». No nosso país, em Moscovo, antes de Pedro, o Grande, davam-se, de tempos a tempos, representações deste género, inspiradas sobretudo no Velho Testamento. Além disso, circulava uma grande quantidade de narrativas e de poemas em que figuravam, segundo as necessidades, os santos, os anjos, o exército celeste. Nos mosteiros traduziam-se e copiavam-se estes poemas, e compunham-se mesmo outros novos, tudo sob a dominação dos Tártaros. Existe, por exemplo, um pequeno poema, traduzido sem duvida do grego: A Virgem no Inferno com quadros duma audácia dantesca: a Virgem visita o
Inferno, guiada pelo arcanjo S. Miguel, e vê os condenados e os seus tormentos; entre outros, há uma categoria muito interessante de pecadores: os do lago de fogo; mergulham no lago e nunca mais aparecem: são aqueles «de que até Deus se esquece» - expressão esta duma profundeza e duma energia notável. A Virgem, chorando, cai de joelhos diante do trono de Deus e pede o perdão de todos os pecadores que viu no Inferno, sem distinção; o Seu diálogo com Deus é dum interesse extraordinário; suplica, insiste e, quando Deus Lhe mostra os pés e as mãos do Filho furados pelos pregos e Lhe pergunta: «Como poderia eu perdoar aos seus verdugos?» -, ordena a todos os santos, a todos os mártires, a todos os anjos que se ponham de joelhos como Ela e implorem a Deus que perdoe a todos os pecadores, sem distinção. Obtém, por fim, que cessem os tormentos, todos os anos, desde Sexta-Feira Santa ao Pentecostes, e os condenados, do fundo do Inferno, agradecem a Deus e gritam: «Senhor, a Tua sentença é justa!». Pois bem: o meu poemazito teria sido deste género, se o tivesse escrito nessa época. Deus aparece; não diz nada; só passa. Rodaram quinze séculos, depois que prometeu voltar ao Seu reino, depois que o Seu profeta escreveu: «Cedo voltarei; quanto ao dia e à hora, o Filho mesmo não os conhece; só o sabe meu Pai que está nos Céus», segundo as próprias palavras que pronunciou na Terra. E a humanidade espera-O com a mesma fé que outrora, fé mais ardente ainda, porque já quinze séculos passaram depois que o Céu deixou de dar penhores aos homens: «Crê no que te diz o coração; os Céus não dão penhores».
É verdade que se produziam então numerosos milagres: os santos realizavam curas maravilhosas, a Rainha dos Céus visitava certos justos, a acreditar no que narram as biografias. Mas o Diabo não dorme; a humanidade começa a duvidar da autenticidade destes prodígios. Neste momento, nasceu na Alemanha uma heresia terrível que negava os milagres. «Uma grande estrela, ardendo como um facho (a Igreja, evidentemente!), caiu sobre as fontes das águas, que se tornaram amargas». A fé dos fiéis redobrou. As lágrimas da humanidade elevam-se para Ele como outrora, e aguardam-n'O e amam-n'O e têm esperança n'Ele como outrora... Já há tantos séculos que a humanidade roga com ardor: «Senhor, digna-Te aparecer-nos», já há tantos séculos que para Ele vão seus gritos, que, na Sua misericórdia infinita, quis descer junto dos fiéis. Já antes tinha visitado, pelo que nos dizem os biógrafos, alguns justos, mártires e santos anacoretas. Entre nós, Pintchev(3), que acreditava profundamente na verdade das Suas palavras, proclamou que «curvado ao peso da Sua cruz e com humilde aparência, o Rei dos Céus te percorreu, ó terra natal, a abençoar-te toda».
Mas eis que se quis mostrar, por um instante ao menos, ao povo sofredor e miserável, ao povo mergulhado nos pecados, mas que O ama ingenuamente. A acção passa-se em Espanha, em Sevilha, na época mais terrível da Inquisição, quando todos os dias, para glória de Deus, se
acendiam as fogueiras e «os medonhos hereges ardiam em soberbos autosde-fé». Oh! não foi assim que prometeu voltar, no fim dos tempos, em toda a Sua glória, subitamente, «como um relâmpago que brilha de Oriente a Ocidente». Não; quis visitar Seus filhos, precisamente no lugar em que crepitavam as fogueiras dos hereges. Na Sua infinita misericórdia, volta para
entre os homens com a forma que tinha durante os três anos de vida pública. Desce pelas ruas ardentes da cidade meridional em que, justamente na véspera, em presença do rei, dos cortesãos, dos cavaleiros, dos cardeais e das mais gentis damas da corte, o grande inquisidor mandou queimar uma centena de hereges, ad majorem gloriam Dei(4). Apareceu suavemente,
sem se fazer notar, e, coisa estranha, todos O reconhecem; a explicação do motivo seria um dos mais belos passos do meu poema; atraído por uma força irresistível, o povo comprime-se à Sua passagem e segue-Lhe os passos. Silencioso, passa pelo meio da multidão com um sorriso de
compaixão infinita. Tem o coração abrasado de amor, dos olhos se Lhe desprendem a Luz, a Ciência, a Força que irradiam e nas almas despertam o amor. Estende-lhes os braços, abençoa-os, e uma virtude salutar emana do Seu contacto e até dos Seus vestidos. Um velho, cego de criança, grita dentre o povo: «Senhor, cura-me e ver-Te-ei»; cai-lhe uma escama dos olhos e o cego vê. O povo derrama lágrimas de alegria e beija o chão que Ele pisa. As crianças deitam-Lhe flores no caminho; todos cantam, todos gritam: Hossana! É Ele, deve ser Ele, não pode ser senão Ele! Pára no adro da Catedral de Sevilha, no momento em que trazem um caixãozinho branco,
com uma menina de sete anos, filha única de um homem importante. A morta está coberta de flores.
- Vai ressuscitar a tua filha - gritam da multidão para a mãe cheia de lágrimas.
O padre que viera ao encontro do caixão olha com ar perplexo e franze o sobrolho. De repente, ouve-se um grito e a mãe lança-se-Lhe aos pés: «Se és Tu, ressuscita-me a filha! - e estende-Lhe os braços. O préstito pára, pousam o caixão nas lajes. Ele contempla-o com piedade e a Sua boca profere suavemente, uma vez mais: Talitha kum, e a rapariga levantou-se. Soergue-se a morta, senta-se e olha em torno, sorridente, com um ar de espanto; segura nas mãos o ramo de rosas brancas que lhe tinham posto no caixão. Na gente que assiste, há perturbação, gritos e choros. Neste instante, passa pela praça o cardeal grande inquisidor. É um velho alto, quase nonagenário, com uma face seca e olhos cavados, onde ainda brilha, porém, uma centelha. Não tem o vestuário pomposo com que no dia anterior se pavoneava diante do povo, enquanto se queimavam os inimigos da Igreja romana; voltou ao grosseiro burel. Os taciturnos ajudantes e a
guarda do Santo Ofício seguem-no a respeitosa distância. Pára diante da multidão e observa-a de longe. Viu tudo, o caixão pousado perante Ele, a ressurreição da criança - e a face tornou-se-lhe sombria. Franze as espessas sobrancelhas e os olhos brilham-lhe com sinistro clarão. Aponta-O com o dedo e ordena aos guardas que O prendam. Tão grande é o seu poder e tão habituado está o povo a submeter-se, a obedecer-lhe, tremendo, que a multidão se afasta diante dos esbirros; estes, no meio de um silêncio de morte, seguram-n'O e levam-n'O. Como um só homem, o povo inclina-se até o chão diante do velho inquisidor que o abençoa sem dizer palavra e prossegue o seu caminho. Conduzem o Preso ao velho e sombrio edifício da Inquisição, metem-n'O em estreita cela abobadada.
Termina o dia e chega a noite, uma noite de Sevilha, quente e sufocante. O ar está todo perfumado de loureiros e limoeiros. De súbito, nas trevas, abre-se a porta de ferro do calabouço e o grande inquisidor aparece, com um archote na mão. Está só e a porta se fecha por trás dele. Pára no limiar, considera longamente a Face Sagrada. Por fim, aproxima-se, pousa o archote na mesa e diz-Lhe:
- És Tu, és Tu? - E, como não recebe resposta, acrescenta rapidamente: - Não digas nada, cala-Te. De resto, que poderias Tu dizer? Já o sei de mais. Não tens o direito de juntar uma palavra ao que disseste outrora. Porque vieste incomodar-nos? Bem sabes que nos incomodas. Mas, sabes o que acontecerá amanhã? Ignoro quem és e nem quero sabê-lo: és Tu ou somente a Sua aparência? Mas amanhã hei-de condenar-Te e serás queimado como o pior dos heréticos e o mesmo povo que hoje Te beijava os pés se precipitará amanhã, a um sinal meu, para deitar lenha na fogueira. Sabes tudo isso? Talvez - diz ainda o velho, pensativo, com os olhos sempre
fixos no Preso.
- Não compreendo bem o que isso quer dizer, Ivã - objectou Aliocha, que tinha escutado em silêncio. - É uma fantasia, um erro do velho, um estranho mal-entendido?
- Admite essa última hipótese - respondeu lvã, rindo - se o realismo moderno te tornou a esse ponto refractário ao sobrenatural. Seja como tu quiseres. É verdade, o meu inquisidor tem noventa anos e pode ser que a sua ideia lhe tenha perturbado o espirito já há muito. Pode ser, enfim, um simples delírio, o sonho de um velho antes do fim, com a imaginação excitada pelo corrente auto-de-fé. Mas, mal-entendido ou fantasia, que nos importa? O que é preciso notar somente é que o inquisidor revela finalmente o seu pensamento, descobre o que calou durante toda a sua carreira.
- E o Preso não diz nada? Contenta-se em olhar?
- Decerto. Não tem outra coisa a fazer senão calar-se. O próprio velho lhe faz observar que não tem o direito de juntar nem mais uma palavra ao que disse antigamente. Na minha humilde opinião, é esta talvez a característica fundamental do catolicismo romano: «Tudo foi transmitido por Ti ao papa, tudo depende agora do papa; não venhas incomodar-nos, antes do tempo,
pelo menos.» Tal é a doutrina deles; em qualquer caso, é a dos Jesuítas; encontrei-a nos seus teólogos.
«Tens Tu o direito de nos revelar um só dos segredos do mundo donde vens?» - pergunta o velho que logo responde em lugar do Outro: «Não, não tens o direito de o fazer, porque esta revelação se juntaria à de outrora, e isso seria retirar aos homens a liberdade que tanto defendias na Terra. Todas as Tuas novas revelações infringiriam a liberdade da fé, porque pareceriam miraculosas; ora, Tu punhas acima de tudo, há quinze séculos, esta liberdade da fé». Não disseste Tu muitas vezes: «Quero tornar-vos livres»? Pois bem: lá os viste, aos homens
«livres» - acrescenta o velho, com um ar sarcástico. Sim, custou-nos caro - prossegue, olhando-o, com severidade, mas, enfim, sempre completámos em Teu nome esta obra. Foram necessários quinze séculos de rude trabalho para instaurar a liberdade; mas está pronto, e bem pronto. Não crês? Olhasme com brandura, sem mesmo dares a honra de Te indignares? Mas é bom saberes que nunca os homens se julgaram tão livres como hoje, e, contudo, depuseram a nossos pés, humildemente, a sua liberdade. É esta a nossa obra, na verdade; é a liberdade que Tu sonhavas?
- Não compreendo outra vez - interrompeu Aliocha; é uma ironia dele, é uma troça?
- De modo nenhum! Gaba-se de terem, Ele e os Seus, suprimido a liberdade, com o objectivo de tornar os homens felizes. «Porque é agora, pela primeira vez (fala da Inquisição, bem entendido), que se pode pensar na felicidade dos homens. São, por natureza, uns revoltados; podem os
revoltados ser felizes? Tu estavas prevenido, não Te faltaram conselhos, mas não Te importaste, puseste de parte o único meio de obter a felicidade para os homens; e foi uma sorte que, ao partires, nos tivesses transmitido a obra, nos tivesses prometido, nos tivesses solenemente concedido o direito de ligar e desligar; não poderias agora pensar em nos retirares esse direito.
Porque vieste incomodar-nos?
- Que significa isso: «Não Te faltaram avisos e conselhos»?
- Mas é o ponto capital do discurso do velho. «O Espírito terrível e profundo, o Espírito da destruição e do nada - continua ele - falou-Te no deserto e contam as Escrituras que Te «tentou». É verdade? E podiam ter-Te dito alguma coisa de mais penetrante que as três
perguntas, ou, para falar como as Escrituras, as «tentações» que repeliste? Se jamais houve na Terra um milagre autêntico e retumbante, foi no dia dessas três tentações. Basta o facto de se terem formulado as três perguntas para que haja o milagre. Suponhamos que desapareciam das
Escrituras, que era preciso reconstitui-las, imaginá-las de novo para as pôr lá outra vez, e que, para esse fim, se reuniam todos os sábios da Terra, homens de Estado, prelados, homens de ciência, filósofos, poetas, e se lhes dizia: «Imaginai, redigi três perguntas que não somente correspondam à importância do acontecimento, mas exprimam ainda, em três frases, toda a
história da humanidade futura; achas que este areópago da sabedoria humana poderia imaginar alguma coisa de tão forte e de tão profundo como as três perguntas que te propôs então o poderoso Espírito? Elas provam, sozinhas, que se tratava do Espírito eterno e absoluto, não dum espírito humano transitório, porque resumem e predizem ao mesmo tempo toda a história posterior da humanidade; são as três formas em que se cristalizam todas as contradições insolúveis da natureza humana. Nesse momento, ninguém deu conta de nada, porque o futuro estava encoberto, mas hoje, como passaram quinze séculos, vemos que tudo fora previsto nas três perguntas e se realizou a tal ponto que é impossível juntar ou cortar uma só palavra.
«Decide Tu próprio quem tinha razão, Tu ou aquele que Te interrogava. Lembra-Te da primeira, pelo menos do sentido: querer ir pelo mundo com as mãos vazias, a pregar aos homens uma liberdade que a sua estupidez e a sua ignomínia natural os impedem de compreender, uma liberdade que lhes faz medo, porque nada há nem nunca houve tão intolerável para o homem e
para a sociedade! Vês estas pedras neste árido deserto? Transforma-as em pães e a humanidade seguirá os Teus passos, como um rebanho dócil e reconhecido, mas sempre com medo que a Tua mão se retire e que o pão se lhe acabe.
«Mas não quiseste privar o homem da liberdade e recusaste, achando que ele era incompatível com a obediência comprada como os pães. Replicaste que o homem não vive só de pão; mas, sabes que em nome do pão terrestre o Espírito da Terra se levantará contra Ti, lutará e Te há-de vencer, e que todos o hão-de seguir gritando: «Quem se pode comparar com a besta que nos dá o fogo do Céu?» Hão-de passar os séculos e a humanidade proclamará, pela boca dos seus homens de ciência e dos seus sábios, que não há crimes e que, por conseguinte, não há pecados: só há famintos.
«Alimenta-os e só depois podes exigir que sejam virtuosos!» Eis o que se há-de inscrever no estandarte da revolta que abaterá o Teu templo. Elevarão em vez dele um novo edifício, uma segunda torre de Babel que, sem dúvida, como a primeira, ficará por terminar; mas poderias ter poupado aos homens esta nova tentativa e mil anos de sofrimento. Hão-de vir procurar-nos, depois de se terem esforçado, durante mil anos, por construir a sua torre. Hão-de procurar-nos debaixo do chão como outrora, nas catacumbas em que estaremos escondidos (porque nos perseguirão de novo) e hão-de clamar: «Dai-nos de comer, porque aqueles que nos tinham
prometido o fogo do Céu nada nos deram.» Então havemos de acabar a torre, porque para tal só é preciso comida, e nós os alimentaremos, em Teu nome, claro, e lho faremos crer. Sem nós, estarão sempre com fome. Nenhuma ciência lhes dará o pão enquanto estiverem livres; e hão-de depôla a nossos pés, a essa liberdade, e dirão: «Fazei de nós escravos, mas alimentai-nos.» Compreenderão, enfim, que a liberdade é inconciliável com o pão da Terra à discrição, porque nunca hão-de saber reparti-lo entre si!
Também se hão-de convencer da sua impotência para se tornarem livres, porque são fracos e depravados, revoltados e nulos. Prometias-lhes o pão do Céu; e, vamos lá uma vez mais, acaso se pode ele comparar com o da Terra aos olhos da fraca raça humana, eternamente ingrata e depravada? Milhares e dezenas de milhares de almas Te hão-de seguir por causa deste pão, mas
que há-de ser dos milhões e dos biliões que não tiverem coragem de preferir o pão do Céu ao pão da Terra? Não serias Tu amigo senão dos grandes e dos fortes, para quem os outros, a multidão inumerável, que é fraca, mas que Te ama, serviria apenas de matéria explorável? Mas nós somos também amigos dos seres fracos. Embora depravados e revoltados, hão-de tornar-se
finalmente dóceis. Hão-de admirar-nos e hão-de julgar-nos deuses por termos consentido, pondo-nos à frente deles, em assegurar a liberdade que temiam e em dominá-los; tal será, por fim, o seu medo de serem livres. Mas dir-lhes-emos que somos Teus discípulos, que reinamos em Teu nome. Enganá-los-emos de novo, porque nessa altura não deixaremos que Te
aproximes de nós. E é esta impostura que constituirá o nosso sofrimento, porque seremos obrigados a mentir. É este o sentido da primeira pergunta que Te fizeram no deserto e foi isto o que Tu repeliste em nome da liberdade que punhas acima de tudo. Continha, no entanto, o segredo do mundo. Se tivesses consentido no milagre dos pães, terias acalmado a eterna
inquietação da humanidade - indivíduos e colectividade - : «diante de quem se inclinar?» Porque não há para o homem que ficou livre cuidado mais constante e mais doloroso do que o de procurar um ser diante do qual se incline. Mas não quer inclinar-se senão diante de uma força incontestada, que todos os seres humanos respeitam por um consentimento universal. Estas pobres criaturas atormentam-se na busca de um culto que reuna não somente alguns fiéis, mas no qual comunguem todos juntos, unidos pela mesma fé. Esta necessidade do comum na adoração é o principal tormento de cada indivíduo e da humanidade inteira, desde o começo dos séculos. É para realizar este sonho que tem havido os extermínios a gládio. Os povos forjaram deuses e desafiaram-se uns aos outros: «Abandona os vossos deuses, adorai os nossos; senão, ai de vós e dos vossos deuses!» E será assim até o fim do mundo, mesmo quando já os deuses tiverem desaparecido; prostrar-se-ão diante dos ídolos. Não ignoravas, não podias ignorar este segredo fundamental da natureza humana e, contudo, repeliste a única bandeira infalível que Te ofereciam e que teria curvado, sem contestação, todos os homens diante de Ti, a bandeira do pão terrestre; repeliste-a em nome do pão celeste e da liberdade! Vê o que fizeste depois, e sempre em nome da liberdade! Não há, torno a dizer-Te, anseio mais doloroso para o homem que o de encontrar o mais cedo possível um ser a quem entregue este dom da liberdade que o desgraçado traz ao nascer.
Mas, para dispor da liberdade dos homens, é necessário dar-lhes a paz da consciência. O pão garantia-Te o êxito; o homem inclina-se diante de quem o dá, porque é coisa incontestada; mas logo que outro se assenhoreie da consciência humana, deixará o Teu pão para seguir quem cativou a sua consciência. Nisto tinhas Tu razão, porque o segredo da existência humana consiste, não somente em viver, mas também em encontrar um motivo de viver. Sem uma ideia nítida do fim da existência, o homem prefere abandoná-la e, embora estivesse rodeado de montões de pão, antes seria capaz de suicidar-se do que de ficar na Terra. Mas, que aconteceu? Em lugar de Te apoderares da liberdade humana, foste alargá-la ainda mais! Esqueceste que o homem prefere a paz, e até a morte, à liberdade de discernir o Bem e o Mal? Nada há de mais sedutor para o homem do que o livre arbítrio, mas nada há também de mais doloroso. E, em vez de princípios sólidos que tivessem tranquilizado para sempre a consciência humana, escolheste noções vagas, estranhas, enigmáticas, tudo o que ultrapassa a força dos homens; agiste, portanto, como se os não amasses, Tu, que tinhas vindo para dar a vida por eles! Aumentaste a liberdade humana em lugar de a confiscares e impuseste assim, para sempre, ao ser moral as agonias dessa liberdade. Querias ser livremente amado, voluntariamente seguido pelos homens que tivesses encantado. Em vez da dura lei antiga, o homem devia, daí por diante, discernir, de coração livre, o Bem e o Mal, não tendo para o guiar senão a Tua imagem; mas não previas
que por fim repeliria e contestaria mesmo a Tua imagem e a Tua verdade, porque estava esmagado pelo fardo terrível da liberdade de escolher? Hãode gritar que a verdade não estava em Ti; de outro modo, não os terias deixado em tão angustiosa incerteza, com tantos cuidados e tantos problemas insolúveis. Preparaste assim a ruína do Teu reino; não deves, portanto, acusar ninguém dessa ruína. Era isto, contudo, o que Te propunham? Há três forças, as únicas que podem subjugar para sempre a consciência destes fracos revoltados: são o milagre, o mistério, a
autoridade! A todas três afastaste, dando assim um exemplo. O Espírito terrível e fecundo transportara-Te ao pináculo do templo e dissera-Te:
«Queres Tu saber se és Filho de Deus? Atira-Te abaixo, porque está escrito que os anjos O hão-de sustentar e segurar e não Se ferirá; ficarás então a saber se és o Filho de Deus e provarás assim a Tua Fé em Teu Pai.» Mas repeliste a proposta e não Te precipitaste. Mostraste nessa altura uma altivez sublime, divina, mas os homens, raça fraca e revoltada, não são deuses! Sabias que, se desses um passo, se fizesses um gesto para Te precipitares, terias tentado o Senhor e perdido a Fé que n'Ele tinhas. Com grande alegria do tentador, ter-Te-ias despedaçado na Terra que vinhas salvar. Mas haverá muitos como Tu? Podes admitir por um instante que os homens teriam a força de resistir a semelhante tentação? É próprio da natureza humana repelir o milagre e, nos momentos graves da vida, perante as questões capitais e dolorosas, entregar-se à livre decisão do espírito? Oh! Tu sabias que a Tua firmeza seria relatada nas Escrituras, atravessaria as idades, atingiria as regiões mais longínquas, e esperavas que, seguindo o Teu exemplo, o homem se contentasse com Deus, sem recorrer ao milagre. Mas ignoravas que o homem repele Deus ao mesmo tempo que o milagre, porque é sobretudo o milagre o que ele busca. E, como não era capaz de passar sem ele, forja novos milagres, os seus próprios milagres, e inclina-se diante dos prodígios dum mago, dos sortilégios de uma feiticeira, mesmo que seja um revoltado, um herético, um ímpio confesso. Não desceste da cruz quando zombavam de Ti e Te gritavam por troça: «Desce da cruz e acreditaremos em Ti.» Não o fizeste, porque não querias escravizar de novo o homem com um milagre; desejavas uma fé que fosse livre e não inspirada
pelo maravilhoso. Era-Te necessário um livre amor, não os transportes dum escravo aterrado. Ainda aí fazias uma ideia elevada dos homens, porque são escravos, embora tenham sido criados rebeldes. Vê e ajuíza, após quinze séculos: quem elevaste até junto de Ti? Posso jurar-to: o homem é mais fraco e mais vil do que Tu julgavas. Acaso pode ele realizar o mesmo que Tu? A grande estima que tinhas pelos homens prejudicou a piedade. Exigiste-lhes demasiado, Tu que, no entanto, os amavas mais do que a Ti próprio! Estimando-os menos, ter-lhes-ias imposto fardo mais leve, mais de acordo com o Teu amor. São cobardes e fracos. Que importa que se insurjam agora contra a nossa autoridade e se orgulhem da sua revolta? É o orgulho dos rapazitos de escola que se amotinaram e expulsaram o mestre. A alegria dos garotos acabará e custar-lhes-á cara. Derrubarão os templos e inundarão a Terra de sangue; mas perceberão por fim, essas estúpidas crianças, que não são mais do que fracos revoltados incapazes de manter a sua revolta durante muito tempo. Derramarão lágrimas absurdas e compreenderão que o Criador, fazendo-os rebeldes, quis troçar deles, com certeza. Hão-de chamá-Lo com desespero e esta blasfémia torná-los-á ainda mais infelizes porque a natureza humana não suporta a blasfémia e acaba
sempre por se vingar. A inquietação, as perturbações, a infelicidade, eis aqui o que possuem os homens, depois de tudo que sofreste pela sua liberdade!
O Teu eminente profeta diz, na sua visão simbólica, que viu todos os que participavam da primeira ressurreição, e que havia doze mil para cada tribo. Para serem tão numerosos deviam ser mais do que homens, deviam ser quase deuses. Suportavam a Tua cruz e a vida no deserto, alimentados a gafanhotos e a raízes; decerto podes estar orgulhoso destes filhos da liberdade, do livre amor, do sublime sacrifício em Teu nome. Mas lembra-Te de que não eram senão alguns milhares e quase deuses; e o resto? É culpa deles, dos outros, dos fracos homens, o não terem podido suportar o que suportam os fortes? Acaso tem culpa a alma fraca de não poder conter dores tão terríveis? Só vieste para os eleitos? Nesse caso, é um mistério, incompreensível para nós, e teríamos o direito de o pregar aos homens, de ensinar que não importam nem a livre decisão dos corações nem o amor, mas sim o mistério, a que se devem submeter cegamente, mesmo contra a aprovação da sua consciência.
Foi o que nós fizemos. Corrigimos a Tua obra fundando-a sobre o milagre, o mistério, a autoridade. E os homens alegraram-se, porque eram de novo levados como um rebanho e ficavam livres da diva funesta que tais tormentos lhes causava. Não é verdade que tínhamos razão para proceder assim? Não era amar a humanidade, compreender a sua fraqueza, aliviando-lhe o fardo com amor, tolerar mesmo o pecado à sua fraca natureza, contanto que fosse com permissão nossa? Para que vieste, portanto, entravar a nossa obra? Para que Te conservas em silêncio e me fixas com o Teu olhar terno e penetrante? É preferível que Te zangues, porque não quero o Teu amor: eu mesmo não Te amo. Porque o hei-de dissimular? Sei a quem falo, conheço o que tenho a dizer-Te, vejo-o nos Teus olhos. Terei eu de Te esconder o nosso segredo? Mas talvez o queiras ouvir da minha boca; aqui o tens. Não estamos contigo, mas com ele, e já há muito tempo. Há exactamente Oito séculos que recebemos dele esta última dádiva que Tu afastaste com indignação quando ele te mostrava todos os reinos da Terra; aceitámos Roma e o gládio de César e declarámonos os únicos reis da Terra, se bem que não tenhamos tido tempo até agora de ultimar a nossa obra. Mas, de quem é a culpa? O trabalho ainda está no princípio, está longe do termo e a Terra terá ainda muito que sofrer, mas nós atingiremos o nosso objectivo, seremos césares; pensaremos então na felicidade universal.
No entanto, poderias ter empunhado o gládio de César. Por que motivo afastaste esta última dádiva? Se seguisses o terceiro conselho do poderoso Espírito, realizarias tudo o que os homens procuram na Terra: um senhor diante de quem se inclinem, um guarda da consciência e o meio de finalmente se unirem em concórdia num formigueiro comum, porque a necessidade da união universal é o terceiro e último tormento da raça humana. A humanidade, no seu conjunto, mostrou sempre tendência para se organizar sobre uma base universal. Tem havido grandes povos de história gloriosa, mas, à medida que se têm elevado, têm sofrido mais, porque sentem mais fortemente do que os outros a necessidade da união universal. Os grandes conquistadores, os Tamerlão e os Gengiscão, que percorreram a Terra como furacões, encarnavam também, sem disso terem consciência, esta aspiração dos povos para a unidade. Aceitando a púrpura de César, terias fundado o império universal e dado a paz ao mundo. Com efeito, quem pode dominar os homens senão aqueles que lhes dominam a consciência e dispõem do pão? Tomamos o gládio de César e, ao fazê-lo, abandonamos-Te para o seguirmos. Oh! hão-de passar ainda séculos de
licença intelectual, de vã ciência e de antropofagia, porque é por isso que hão-de acabar, depois de terem edificado sem nós a sua torre de Babel.
Então a besta virá ter connosco, de rastos, lamberá os nossos pés, regá-losá com lágrimas de sangue; e subir-lhe-emos para cima e levantaremos no ar uma taça em que estará gravada a palavra «Mistério!» Só então a paz e a felicidade reinarão entre os homens. Tens orgulho dos Teus eleitos, mas são apenas um escol, ao passo que nós daremos o repouso a todos. De resto,
entre esses fortes destinados a serem os eleitos, quantos se cansaram de esperar, quantos levaram e continuarão a levar para outros pontos as forças do seu espírito e o ardor do seu coração, quantos acabarão por se insurgir contra Ti em nome da liberdade. Mas foste Tu quem a deu. Tornaremos os homens felizes, cessarão as revoltas e chacinas que são inseparáveis da Tua
liberdade. Oh! havemos de persuadi-los de que não serão verdadeiramente livres senão abdicando da sua liberdade em nosso favor. Pois bem! Diremos a verdade ou mentiremos? Eles próprios se convencerão de que falamos a verdade, porque se hão-de lembrar da escravatura e da perturbação em que os tinha lançado a Tua liberdade. A independência, o pensamento livre, a
ciência, hão-de perdê-los num tal labirinto, hão-de pô-los em presença de tais prodígios, de tais enigmas, que uns, rebeldes, furiosos, se destruirão a si próprios, outros, rebeldes, mas fracos, multidão de cobardes e de miseráveis, se hão-de arrastar aos nossos pés em clamores: «Sim, tínheis razão, só vós possuís o seu segredo e a vós regressamos; salvai-nos de nós mesmos!» Sem dúvida, ao receberem de nós os pães, verão bem que são os seus os que tomamos, os seus, ganhos pelo seu próprio trabalho, para os distribuirmos, sem nenhum milagre; verão bem que não mudamos as pedras em pão, mas o recebê-lo das nossas mãos dar-lhes-à mais prazer do
que o próprio pão. Hão-de lembrar-se de que outrora esse pão, fruto do seu trabalho, se lhes mudava em pedra nas mãos, ao passo que depois, quando voltaram a nós, as pedras se transformaram em pão. Compreenderão o valor da submissão definitiva. E, enquanto o não compreenderem, os homens serão infelizes. Diz-me: quem contribuiu mais para esta
incompreensão? Quem dividiu o rebanho e o dispersou pelas estradas desconhecidas? Mas o rebanho se reunirá de novo, voltará à obediência e, então, será para sempre. Vamos dar-lhes uma felicidade humilde e branda, uma felicidade adaptada às criaturas fracas que eles são. Havemos de persuadi-los de que não se orgulhem, porque foste Tu, ao elevá-los, quem lho ensinou; havemos de provar-lhes que são débeis, que são umas lamentáveis crianças, mas que a felicidade infantil é a mais deliciosa. Tornar-se-ão tímidos, não nos perderão de vista e apertar-se-ão a nós, cheios de medo, como a ninhada que se abriga sob a asa da mãe. Hão-de sentir uma receosa surpresa e mostrar-se-ão orgulhosos da energia e da inteligência que nos terão permitido domar a inumerável multidão dos rebeldes. A nossa cólera fá-los-à tremer, encher-se-ão de timidez, e os olhos se lhes velarão de lágrimas como nas crianças e nas mulheres; mas, a um sinal nosso, passarão com a mesma facilidade para o riso e para a alegria, para o radioso júbilo das crianças.
Havemos, certamente, de os obrigar ao trabalho, mas, nas horas de repouso, organizar-lhes-emos a vida como um jogo infantil, com cantos, coros e danças inocentes. Oh! permitir-lhes-emos até que pequem, porque são fracos, e por isso nos hão-de amar como crianças. Dir-lhes-emos que todo o pecado será redimido, se o cometerem com permissão nossa; é por amor que os deixaremos pecar e sobre nós recairá o castigo. Hão-de querernos como a benfeitores que se apresentam diante de Deus com os pecados deles. Não terão para nós nenhuns segredos. Segundo o grau de obediência, permitir-lhes-emos ou proibiremos que vivam com as mulheres ou as amantes, que tenham filhos ou não os tenham; e hão-de escutar-nos com alegria. Hão-de submeter-nos os segredos mais dolorosos da sua consciência; resolver-lhes-emos todos os casos e hão-de aceitar a nossa decisão com alegria, porque lhes poupará o grave cuidado de escolherem
por si próprios, livremente. E todos serão felizes, milhões de criaturas, excepto uns cem mil, os dirigentes, excepto nós, os depositários do segredo. Os felizes hão-de contar-se por biliões e haverá cem mil mártires sob a carga do conhecimento maldito do Bem e do Mal. Morrerão pacificamente, suavemente se extinguirão em Teu nome, e no Além nada encontrarão senão a morte. Mas guardaremos o segredo: embalá-los-emos, para sua felicidade, com uma recompensa eterna no Céu. Porque, se houvesse outra vida, não seria decerto para seres como eles. Profetiza-se que Tu voltarás para vencer de novo, rodeado dos eleitos, poderosos e altivos; e nós
diremos que só se salvaram a si próprios, ao passo que nós salvámos o mundo. Pretende-se que a pecadora, montada na besta e tendo na mão a taça do martírio, será desonrada; que os fracos se revoltarão de novo, lhe rasgarão a púrpura e desnudarão seu corpo «impuro». Então eu me
levantarei e mostrarei os biliões de felizes que não conheceram o pecado. E nós, os que tivermos tomado sobre nós as faltas deles, para sua felicidade, erguer-nos-emos diante de Ti, dizendo: «Não Te receio; também estive no deserto, também vivi de gafanhotos e de raízes; também abençoei a liberdade com que favoreceste os homens, também me preparava para figurar entre os Teus eleitos, os poderosos e os fortes, com um ardente desejo de «completar o número». Mas dominei-me e não quis servir uma causa insensata. Voltei, para me juntar aos que corrigiram a Tua obra. Abandonei os altivos, regressei aos humildes, para os tornar felizes. Sucederá o que Te disse e edificar-se-á o nosso império. Repito-Te: amanhã, a um sinal que eu fizer, verás o dócil rebanho trazer brasas para a fogueira a que hás-de subir por teres vindo entravar a nossa obra. Se alguém mereceu mais que todos a fogueira, esse alguém és Tu. Amanhã, queimar-Te-ei.
Dixi.»
Ivã parou. Tinha-se exaltado com o discurso; quando acabou, apareceu-lhe um sorriso nos lábios.
Aliocha tinha escutado em silêncio, com extrema emoção. Por várias vezes tinha querido interromper o irmão, mas tinha-se contido.
- Mas... é absurdo! - exclamou, corando. - O teu poema é um elogio a Jesus, não é uma censura, como querias. Quem vai acreditar o que disseste da liberdade? Será assim que temos de a entender? É essa a concepção da Igreja ortodoxa? É Roma, e nem toda ainda, são os piores elementos do catolicismo, os inquisidores, os Jesuítas. Não existem personagens fantásticas como o teu inquisidor. Quais são esses pecados dos outros que ele toma sobre si? Quais são esses detentores do mistério que se carregam de maldições para bem da humanidade? Quando é que se viu coisa semelhante? Conhecemos os Jesuítas, diz-se muito mal deles; mas são semelhantes aos teus? De modo algum! É simplesmente o exército romano, o instrumento da futura dominação universal, tendo à frente um imperador, o pontífice romano... Eis o ideal que eles têm; não há aí nenhum mistério, nenhuma tristeza sublime... a sede de reinar, a vulgar cobiça dos vis bens terrestres... uma espécie de futura servidão em que deles seriam todos os bens de raiz... eis tudo. Talvez mesmo não acreditem em Deus. O teu inquisidor não é mais do que uma ficção.
- Espera, espera - disse-lhe rindo lvã. - Como tu te exaltas! Uma ficção? Seja, evidentemente. No entanto, crês tu que todo o movimento católico dos últimos séculos seja inspirado somente pela sede do poder, que não tenha em vista senão os bens terrestres? Não é o Padre Paisius quem te ensina isso?
- Não, não, pelo contrário. O Padre Paisius falou-me uma vez segundo as tuas vistas... mas não era precisamente a mesma coisa.
- Aí está uma informação preciosa, apesar do teu «não era precisamente a mesma coisa». Mas por que razão os Jesuítas e os inquisidores se teriam unido só em vista da felicidade terrestre? Não se poderá encontrar entre eles um mártir que tenha um nobre sofrimento e que ame a humanidade? Supõe que entre esses seres, que não anseiam por outra coisa senão pelos bens
materiais, há um só como o meu velho inquisidor que viveu de raízes no deserto e se bateu por vencer os sentidos, para se tornar livre, para atingir a perfeição; no entanto, sempre tem o amor da humanidade. De repente, vê tudo claro, reconhece que é medíocre felicidade a de chegar a uma liberdade perfeita, quando milhões de criaturas continuam para sempre na desgraça,
fracas de mais para usarem da sua liberdade, que estes débeis revoltados nunca poderão acabar a sua torre e que não foi para tais gansos que o grande idealista sonhou a sua harmonia. Depois de ter compreendido tudo isto, o meu inquisidor volta para trás e junta-se às pessoas inteligentes. É impossível?
- Mas juntar-se a quem? A que pessoas inteligentes? - gritou Aliocha, quase zangado. - Não são tal inteligentes, não têm mistérios nem segredos... O ateísmo, eis o segredo. O teu inquisidor não crê em Deus.
- Bem, suponhamos que é assim. Adivinhaste, finalmente. É isso mesmo, todo o segredo está aí. Mas não é um sofrimento, pelo menos para um homem como ele que no deserto sacrificou a sua vida ao seu ideal e não deixou de amar a humanidade? Ao declinarem-lhe os dias, convence-se
claramente de que só os conselhos do grande e terrível Espírito poderiam tomar suportável a existência dos débeis revoltados, «esses seres de aborto, criados por troça». Compreende que deve escutar o Espírito profundo, este Espírito de morte e de ruína e, para o fazer, admitir a mentira e a fraude, levar conscientemente os homens para a morte e para a ruína, enganandoos
durante todo o caminho, para lhes não revelar onde os levam e para que os pobres cegos tenham a ilusão da felicidade. Nota isto: a fraude em nome de Aquele em quem o velho acreditou ardentemente durante toda a sua vida! Não é isto uma infelicidade? E se houver alguém, se houver um só homem semelhante à frente deste exército «ávido do poder apenas para os
vis bens», não bastará isto para que se dê uma tragédia? Mais ainda: basta um único chefe semelhante para encarnar a verdadeira ideia directriz do catolicismo romano, com os seus exércitos e os seus jesuítas, a ideia superior. Declaro-te que estou convencido de que nunca faltou um homem deste tipo à frente do movimento. Quem sabe? Talvez haja alguns entre os
pontífices romanos! Quem sabe? Talvez que esse maldito velho que ama tão obstinadamente a humanidade, à sua maneira, exista ainda agora em vários exemplares, não por efeito do acaso, mas sob a forma de um entendimento, duma liga secreta, organizada já há muito tempo para guardar o mistério, ocultá-lo aos desgraçados e aos fracos para os tornar felizes. Deve
seguramente ser assim; é fatal. Imagino mesmo que a maçonaria tem um mistério análogo na base da sua doutrina e que deve ser por isso que os católicos odeiam tanto os mações; vêem neles concorrentes, vêem neles uma dispersão da ideia única, quando deve existir apenas um rebanho com um único pastor. Mas basta: não quero ter, com esta defesa do meu pensamento, o ar de um autor que não suporta a tua crítica.
- Talvez tu sejas também mação - disse de súbito Aliocha. - Não acreditas em Deus - continuou com profunda tristeza.
Tinha-lhe parecido também que o irmão o contemplava com ar de troça.
- Como acaba o teu poema? - prosseguiu ele, baixando os olhos. - Não há mais nada?
- Há. O fim que eu tinha pensado era este: «O inquisidor cala-se, espera um momento a resposta do Preso. O Seu silêncio oprime-o. O Cativo escutou-o sempre fixando nele o olhar penetrante e calmo, visivelmente decidido a não lhe responder. O velho gostaria de que Ele lhe dissesse alguma coisa, mesmo que fossem palavras amargas e terríveis. De repente, o Preso aproxima-se em silêncio do nonagenário e beija-lhe os lábios exangues. Mais nenhuma resposta. O velho tem um sobressalto, mexe os lábios; vai até à porta, abre-a e diz: «Vai e nunca mais voltes... nunca mais.» E deixa-o ir, nas trevas da cidade. O Preso vai.
- E o velho?
- O beijo queimou-lhe o coração, mas persiste na sua Ideia.

________________________
Notas:
1 Poeta Italiano, autor, entre outras obras, de Vita Nuova e d'A Divina
Comédia, de que existe tradução portuguesa, viveu de 1265 e 1321.
2 Funcionários Judiciais.
3 Poeta russo, defensor da «santidade» da Rússia; viveu de 1803 a 1873.
4 Para maior glória de Deus.

Saturday, March 11, 2006

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CORAGEM

Impressionante a coragem da psiquiatra Wafa Sultan, 47 anos, americana de origem árabe nascida na Síria, que numa entrevista à rede de TV Al Jazeera, debatendo com um religioso muçulmano, disse o que muitos, certamente a maioria dos muçulmanos, gostariam de poder dizer aos radicais e terroristas que usam o Islã para justificar o terror. "Não é um choque de civilizações o que está acontecendo", ela diz, um choque entre Ocidente e Oriente Médio, mas "um choque entre duas mentalidades, entre a barbárie e a racionalidade, entre a liberdade e a opressão, entre a demcracia e a ditadura, entre os direitos humanos e a violação desses direitos, entre aqueles que tratam as mulheres como bestas e aqueles que as tratam como seres humanos".

Eu gostaria de ver o que aqueles que tratam como "mártires" os terroristas que se explodem para matar quem eles chamam de "infiéis" teriam a dizer diante da condenação apaixonada da Dra. Sultan a esse horror. "Os muçulmanos", ela diz, "têm que se perguntar o que eles podem fazer pela humanidade, antes de exigir que a humanidade os respeite".

Você pode ver aqui trechos do video em árabe, com legendas em inglês, e ler aqui uma transcrição em inglês.

Claro que a secretária eletrônica da Dra. Sultan está entupida de ameaças de morte e uma fatwa (sentença religiosa) já foi decretada condenando-a à morte, mas nem assim ela se intimida. Está escrevendo um livro: "O Prisioneiro Fugido: Quando Deus é um Monstro" e vai correr o mundo dando palestras, inclusive em Israel. A repercussão enorme que ela está tendo (está na primeira página do New York Times deste sábado e o video já foi visto na Internet por mais de 1 milhão de pessoas), pode mudar o jogo, ajudando a desmascarar os radicais que intimidam os verdadeiros muçulmanos através da violência.
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Paul Haggis ganhou dois Oscars: melhor filme e melhor roteiro

CRASH

Só fui ver Crash hoje, depois que ganhou o Oscar de surpresa. Um filme que não fez muito sucesso no ano passado e já estava passando na TV e sendo vendido em DVD. Não há dúvida que é um ótimo filme, mas se eu fosse da Academia teria votado em Brokeback Mountain.

Mas apesar da piada idiota de que Crash ganhou porque o diretor Paul Haggis segue a igreja da Cientologia, o filme tem grandes qualidades. Ao contrário de Brokeback Mountain, Crash não é uma reflexão profunda sobre um só tema (no caso de Brokeback, o amor). É o oposto, um caleidoscópio onde tudo entra: racismo, divisão de classes, intolerância, amor, sexo, ódio, política, o trânsito de Los Angeles, corrupção policial, tráfico de imigrantes ilegais, dependência de drogas, banditismo, kitsch natalino, amor filial, medo, violência, heroísmo, covardia. O único tema que une esse caos todo é a pergunta: você sabe quem você é?

No diálogo crucial do filme, o policial "vilão" Ryan (Matt Dillon) diz ao colega "bonzinho" Hanson (Ryan Philippe): "Você pensa que sabe quem você é. Você não tem a menor idéia".

Crash é um emaranhado muito bem armado de histórias cheias de reviravoltas, onde os "maus" são capazes de atos heróicos e os "heróis" de atos vis. Depois de anos de uma vida tumultuada de bem sucedido escritor de seriados de TV em Hollywood, o canadense Haggis, 52 anos, deu uma parada por sugestão de um amigo para se autoanalisar. "Não tinha a menor idéia de quem eu era. Era ao mesmo tempo uma pessoa boa e péssima, um amigo ótimo e um amigo terrível. Talvez todos nós sejamos assim, contraditórios: heróis convivendo com vilões".

O roteiro do filme, pelo qual Haggis também ganhou o Oscar, força um pouco a barra pelo excesso de coincidências, para em 113 minutos mostrar os dois lados de dezenas de personagens, um tour de force brilhante. Um crítico brincou: fica parecendo que em Los Angeles só moram 30 pessoas que se cruzam o tempo todo e se odeiam. São tantos atores, de igual importância na história, que na festa do Oscar o apresentador Jon Stewart pediu: "Quem não trabalhou em Crash por favor levante a mão". Ninguém levantou.

A experiência de escrever ficção para TV (tão diferente dessa atividade no Brasil, já que na TV americana no horário nobre os diálogos são sempre rápidos e brilhantes, as tramas muito sucintas e bem amarradas) deu um talento especial a Haggis. Ele ganhou o Oscar no ano passado de melhor roteiro por Million Dollar Baby.

Crash tem os diálogos mais ousados e politicamente incorretos sobre racismo que os americanos já ouviram no cinema - mas que são comuns nos seriados de TV. O humor dos diálogos atenua o drama das muitas tragédias que se repetem numa Los Angeles onde o único contato humano é o crash, a batida entre automóveis.

Também da TV Haggis traz a capacidade de se equilibrar entre o piegas e o autêntico, sem cair nos clichês habituais de Hollywood. Há uma cena que não posso descrever que pode ser vista tanto como uma das mais sentimentalóides da história do cinema, ou uma das mais mágicas e emocionantes. Fica a critério do freguês.

É a estréia de Haggis como diretor. Ele tem novos projetos com Clint Eastwood (que dirigiu Million Dollar Baby) sobre a batalha de Iwojima e outro sobre um pai que investiga a morte do filho, um soldado assassinado pelos companheiros de armas depois que volta da guerra no Iraque.

O melhor e mais entusiasmado artigo sobre Crash é o de David Denby na revista New Yorker, que saiu quando o filme foi lançado em maio (muito antes de Brokeback Mountain) e que você pode ler aqui. Para Denby, é o filme americano mais forte desde Mystic River de Clint Eastwood (2003). E trata do mesmo tema: você sabe quem você realmente é?

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Matt Dillon e Ryan Philippe. Ninguém sabe se é bom ou mau.

Friday, March 10, 2006

A negação de São Pedro, Gerrit van Honthorst


A Negação de São Pedro

O que é que Deus faz com as maldições e troças
Que sobem todo dia aos seus caros anjinhos?
Como um tirano farto de carne e de vinhos
Ele dorme ao som doce das blasfêmias nossas.

Os soluços dos mártires e torturados
Devem mesmo compor a melhor sinfonia;
Apesar da volúpia de sangue e agonia
O céu ainda não está bem saciado!

Ah, Jesus, lembra o Jardim das Oliveiras!
Humilde, de joelhos sobre a pedra dura,
Oravas àquele que ria da tortura
Que iria magoar a tua carne inteira.

Ao ver cuspirem sobre tua divindade
A ralé das cozinhas e os guardas mesquinhos
E ao sentir enterrarem-se os espinhos
No crânio onde vivia a imensa Humanidade,

Quando o peso horrível do teu corpo quebrado
Distendeu os teus braços, e quando teu sangue
E teu suor rolaram sobre o rosto exangue,
Ao ser diante de todos crucificado,

Será que sonhavas com os dias tão belos
Da tua vinda, promessa do livro eterno,
Da tua chegada, sobre um burrinho terno,
Pelos caminhos cheios de ramos singelos,

Quando, o coração repleto de esperança,
Chicoteaste os vendilhões com valentia
E eras mestre? O remorso não teria
Entrado no teu peito, mais fundo que a lança?

-- Quanto a mim deixarei satisfeito, decerto,
Um mundo onde a ação não é irmã do sonho;
Morro, mas, se puder, o ferro ao ferro oponho!
São Pedro renegou Jesus... estava certo!


Le Reniement de saint Pierre

Qu'est-ce que Dieu fait donc de ce flot d'anathèmes
Qui monte tous les jours vers ses chers Séraphins?
Comme un tyran gorgé de viande et de vins,
II s'endort au doux bruit de nos affreux blasphèmes.

Les sanglots des martyrs et des suppliciés
Sont une symphonie enivrante sans doute,
Puisque, malgré le sang que leur volupté coûte,
Les cieux ne s'en sont point encore rassasiés!

-- Ah! Jésus, souviens-toi du Jardin des Olives!
Dans ta simplicité tu priais à genoux
Celui qui dans son ciel riait au bruit des clous
Que d'ignobles bourreaux plantaient dans tes chairs vives,

Lorsque tu vis cracher sur ta divinité
La crapule du corps de garde et des cuisines,
Et lorsque tu sentis s'enfoncer les épines
Dans ton crâne où vivait l'immense Humanité;

Quand de ton corps brisé la pesanteur horrible
Allongeait tes deux bras distendus, que ton sang
Et ta sueur coulaient de ton front pâlissant,
Quand tu fus devant tous posé comme une cible,

Rêvais-tu de ces jours si brillants et si beaux
Où tu vins pour remplir l'éternelle promesse,
Où tu foulais, monté sur une douce ânesse,
Des chemins tout jonchés de fleurs et de rameaux,

Où, le coeur tout gonflé d'espoir et de vaillance,
Tu fouettais tous ces vils marchands à tour de bras,
Où tu fus maître enfin? Le remords n'a-t-il pas
Pénétré dans ton flanc plus avant que la lance?

-- Certes, je sortirai, quant à moi, satisfait
D'un monde où l'action n'est pas la soeur du rêve;
Puissé-je user du glaive et périr par le glaive!
Saint Pierre a renié Jésus... il a bien fait!

Poema Baudelaire, tradução Pontual

Thursday, March 09, 2006

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O MASSACRE NOS ANOS 50 E 60
Anna Maria Ribeiro

Não! Não se trata de sanguinolentos embates. Não de menos é, ou melhor, foi um massacre! Já casada e com filhos, na época, absurdamente não me dei conta de sua extensão. Imaginava tratar-se de um fenômeno que só acorria no meio militar. Eu sempre me havia sentido como um peixe fora d’água no convívio daquelas senhoras com patentes. Porque as tinham, as senhoras de oficiais mais graduadas do que eu. Para meu enorme espanto eu havia, ao casar, sido promovida ao mesmo posto de meu marido, um segundo tenente da Aeronáutica. Eram-me estranhas as conversas e tudo que se dizia ou pensava não fazia sentindo para mim. Vai daí que julguei que militares eram diferentes: pertenciam a um mundo que não era o meu e que nunca havia visto de perto. Hoje ao receber de uma amiga um elenco de frases publicadas em revistas femininas das décadas de 50 e 60, percebo que a diferente era eu. O mundo era aquele mesmo. Eu é que era oriunda de um outro. Minha família inteira era um mundo aparte que havia me educado fora dos parâmetros da época. Estas mesmas frases que hoje fazem rir são as mesmas que eu ouvia com freqüência, a mim dirigidas num tom de alerta ou recriminação. E não tinha a menor graça quando eu as escutava. As palavras não eram as mesmas, mas o sentido era idêntico. Foi muito complicado sobreviver sem me sentir uma desclassificada. Eu só tinha 19 anos e a insegurança batia, claro. Graças a Deus exceções havia e eu consegui me relacionar com umas poucas moças que, como eu, eram marginalizadas pelo que diziam, pelo que faziam e pelo que pensavam. Mas vamos a elas, as frases.

Não se deve irritar o homem com ciúmes e dúvidas. (Jornal das Moças, 1957)
Se desconfiar da infidelidade do marido, a esposa deve redobrar seu carinho e
provas de afeto. (Revista Claudia, 1962)
A desordem em um banheiro desperta no marido a vontade de ir tomar banho fora
de casa. (Jornal das Moças, 1945)
A mulher deve fazer o marido descansar nas horas vagas. Nada de incomodá-lo com
serviços domésticos. (Jornal das Moças, 1959)
A esposa deve vestir-se depois de casada com a mesma elegância de solteira, pois é
preciso lembrar-se de que a caça já foi feita, mas é preciso mantê-la bem presa.
(Jornal das Moças, 1955)
Se o seu marido fuma, não arrume briga pelo simples fato de cair cinzas no tapete.
Tenha cinzeiros espalhados por toda casa. (Jornal das Moças, 1957)
A mulher deve estar ciente que dificilmente um homem pode perdoar uma mulher
por não ter resistido às experiências prenupciais, mostrando que não era perfeita e
única, exatamente como ele a idealizara. (Revista Cláudia, 1962)
Mesmo que um homem consiga divertir-se com sua namorada ou noiva, na verdade
ele não irá gostar de ver que ela cedeu. (Revista Querida, 1954)
O noivado longo é um perigo (Revista Querida, 1953)
É fundamental manter sempre a aparência impecável diante do marido. (Jornal das
Moças, 1957)
O lugar de mulher é no lar. O trabalho fora de casa masculiniza. (Revista Querida,
1955)

Eu poderia ilustrar com exemplos reais a tragédia que ocorreu com muitas das leitoras das revistas em questão, pela adoção do comportamento preconizado. Só agora, passados muitos anos, tenho conhecimento da fonte que as orientava. E percebo que se comportavam by the book. Era enorme o esforço que faziam para fornecer carinho e provas de afeto aos maridos infiéis garantindo a eles uma confortável e tranqüila permanência no estado de infidelidade; mantinham uma aparência impecável na presença deles o que contrastava com a descuidada aparência dos mesmos em casa; permaneciam reclusas “no lar” tendo no marido a única fonte de informação. Vai daí que só sabiam o que a ele convinha. Hoje percebo que eles – os maridos - nem faziam isto de caso pensado: era assim. Para eles era isto o normal. Deixavam que elas pensassem que a garantia de mantê-los como “caça” conquistada viria unicamente da forma com que se apresentassem e seguissem à risca todas as orientações dadas. E era terrível ver como sofriam aquelas moças quando logo e muito cedo percebiam que as coisas não davam certo e que não eram felizes. Assustadas e feridas percebiam que a “caça” insistia em se rebelar e a não agir nos conformes. Mesmo que passassem a vida arrumando banheiros e distribuindo cinzeiros pela casa. Mesmo que recebessem os trêfegos e infiéis maridos com sorrisos ternos e agrados quando regressavam da casa da “outra” e mesmo que fingissem não ter a menor idéia do que estava ocorrendo. Não consigo achar graça nestas frases que me foram enviadas na intenção de exibir um divertido contexto da época. Elas foram responsáveis por muito sofrimento. O que hoje faz rir, fez muita gente chorar. E chorar muito.

Wednesday, March 08, 2006

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UM AMOR POSSÍVEL

Gostei muito do texto do Jabor sobre o filme Brokeback Mountain. O filme tem mesmo dimensão de tragédia grega. Mas o conto no qual ele se baseia, embora contenha essa tragédia e tenha sido adaptado de forma absolutamente fiel e brilhante, termina com uma abertura para a possibilidade do amor e do prazer, que falta ao filme. Não sou cineasta como o Jabor e não sei se teria sido possível introduzir esse elemento num filme, porque se trata de um sonho. E sonho em filme tende a ser piegas, inverossímil ou forçação de barra.
O conto de Annie Proulx, Brokeback Mountain, começa com Ennis del Mar (no filme Heath Ledger), já velho, acordando num trailer ainda mais miserável do que o do filme, de onde tem que sair porque terminou o trabalho temporário dele num rancho de criação de cavalos, sem saber se vai conseguir outro trabalho. Mas ele está impregnado (suffused) de prazer porque Jack (o personagem de Jake Gyllenhaal) estava no sonho dele.
No fim do conto, depois de toda a tragédia, quando Ennis pendura num prego, ao lado da foto da montanha onde eles se conheceram e foram felizes, o cabide com as camisas dele e de Jack, uma dentro da outra, como ele as tinha encontrado na casa dos pais do amante, escondidas no quarto dele por mais de 20 anos, é que Jack começa a aparecer nos sonhos de Ennis. O Jack que ele tinha visto pela primeira vez, com 18 anos, de cabelos encaracolados e um sorriso dentuço (Jack não se parece nada com o bonitão Jake Gyllenhal: é baixinho, gordinho e meio feioso). Depois que começou a sonhar com Jack, Ennis "acordava às vezes triste, às vezes com a antiga sensação de felicidade e gozo; o travesseiro às vezes molhado, às vezes os lençóis".
E a escritora conclui: "Havia um espaço aberto entre o que ele sabia e o que ele tentava acreditar, mas nada podia ser feito quanto a isso, e quando não tem conserto o jeito é aguentar".
Jabor se empolgou, com razão, com a dimensão épica desse amor impossível. Mas do jeito que Annie Proulx termina o conto, trazendo a história para a dimensão simples, cotidiana, do sonho, do travesseiro e dos lençóis molhados, da saudade triste e prazeirosa, ela faz do amor de Ennis e Jack algo que qualquer um de nós pode viver. E vive.

Leia aqui o texto em inglês do conto de Annie Proulx.

Tuesday, March 07, 2006

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Brokeback’ é um filme sobre heróis machos
Arnaldo Jabor

Eu não queria ver o filme “Segredo de Brokeback Mountain”. Não queria. Ver filme de viados , eu? (Escrevo viado porque, como disse Millôr, quem escreve “veado” é viado ). Muito bem; eu resistia à ideia, mais ou menos como o Larry David (o roteirista de “Seinfeld”) disse, num artigo engraçadíssimo, que tinha medo de virar gay se ficasse emocionado.

O viado sempre encarnou a ambigüidade de nossos sentimentos. Claro que, hoje, os civilizados todos dizem que “tudo bem, que são contra a homofobia” e todo o bullshit costumeiro. Eu mesmo já fiz filmes em que viados são protagonistas, em que o ator principal escolhe o homosexualismo no final (“Toda nudez será castigada”), já filmei travesti em “Eu te amo” e em “Eu sei que vou te amar”, além da biba louca do “O casamento”, em que o grande ator André Valli dá um show inesquecível. Em todos os meus filmes há uma boneca ativa e digna. E, no entanto, eu não queria ver o tal filme do Ang Lee, apelidado pelos machistas finos de “Chapada dos Viadeiros”.

Minhas razões eram mais discretas, intelectuais: “Ah... porque o Ang Lee é um cineasta mediano, ah... porque será mais um filme politicamente correto, onde o amor de dois caubóis é justificado romanticamente... Vou fazer o que no cinema? Ver mais um panfletinho que ensina que os gays devem ser compreendidos em seu ”desvio“? Não. Não vou”, pensei.

Aliás, eu sou do tempo em que os viados apanhavam na cara em plena rua. Havia pouquíssimos gays declarados no Brasil. No Rio, havia o Murilinho... cantor de fox em boates, havia o Clovis Bornay e poucos outros... O viado passava na rua sob os rosnados dos boçais prontos para lhes tirar sangue. E, no anonimato, enxameavam os pobres “pederastas”, de terno e gravata, pais de família se esgueirando nas esquinas, nas noites escuras, em busca de satisfação.

Mais tarde, com o tempo, surgiram as “bichas loucas”, que se assumiam com um toque de autoflagelação, de autoderrisão, caricaturas da mãe odiada e amada, que berravam e desfilavam nos carnavais num freje humorístico, que até hoje alimenta nossos shows na TV. A “bicha” virou uma personagem clássica do humor, como os palhaços e os bacalhaus de circo. E tudo bem... são engraçados mesmo.

Depois, com os direitos civis dos anos 60, surgiu a gay power , com homossexuais fortes e de bigode, malhados, cheios de orgulho. A viadagem virou um poder político importante, claro, mas até meio sério demais, aspirando a uma “normalidade” que contrariava sua “missão” trangressiva que tanto nos acalmava. Como disse Paulo Francis um dia, sacaneando-os: “Se esses caras querem todos os direitos e deveres dos caretas como nós, qual é então a vantagem de ser viado ?”

Em suma, por mais que “aceitemos” os gays, eles sempre foram uma fonte de angústia, pois atrapalham nosso sossego, nossa identidade “clara”. O gay é duplo, é dois, o viado tem algo de centauro, de ameaçador para a unicidade do desejo. A bicha louca ou o travesti, a biba doida ou o perobo , o boy , o puto, a santa, a tia, a paca, todos eles nos tranqüilizavam com suas caricaturas auto-excludentes. Já o gay sério inquieta. O gay banqueiro, o gay de terno, o gay forte, o gay caubói são muito próximos de nos, a diferença fica mínima.

Por isso, eu não queria ver o tal filme dos caubóis. Como? Caubói de mãos dadas, dando beijos românticos, com tristes rostos diante do impossível? Não. Eu, não. Mas, aí, por falta de programa, “distraidamente”... (aí, hein, santa?...) fui ver o filme. E meu susto foi bem outro. O filme não me pedia aprovação alguma para o homossexualismo, o filme não demandava minha solidariedade. Não. Trata-se de um filme sobre o império profundo do desejo e não uma narração simpática de um amor “desviante”. O filmes se impõe assustadoramente. Os dois caubóis jovens e fortes se amam com um tesão incontido e são tomados por uma paixão que poucas vezes vi num filme, hetero ou não. Foi preciso um chinês culto para fazer isso. Americano não agüentava. Nem europeu, que ia ficar filosofando. “Brokeback” é imperioso, realista, sem frescuras. Eu fiquei chocado dentro do cinema, quando os dois começam a transar subitamente, se beijando na boca com a fome ancestral vinda do fundo do corpo. O filme não demandava a minha compreensão. Eu é que tinha de pedir compreensão aos autores do filme, eu é que tive de me adaptar à enorme coragem da história, do Ang Lee. Eu é que precisava de apoio dentro do cinema, flagrado, ali, desamparado no meu machismo “tolerante”. Eu é que era o careta, eu é que era o viado no cinema, e eles, os machos corajosos, se desejando não como pederastas passivos ou ativos, mas como dois homens sólidos, belos e corajosos, entre os quais um desejo milenar explodiu. Não há no filme nada de gay, no sentido alegre, ou paródico ou humorístico do termo. Ninguém está ali para curtir uma boa perversão. Não. Trata-se de um filme de violento e poderoso amor. É dos mais emocionantes relatos de uma profunda entrega entre dois seres, homos ou heteros. Acaba em tragédia, claro, mas não são “vítimas da sociedade”. Não. Viveram acima de nós todos porque viveram um amor corajosíssimo e profundo. Há qualquer coisa de épico na história, muito mais que romântica. Há um heroísmo épico, grego, como entre Aquiles e Pátroclo na “Ilíada”, algo desse nível. O filme não é importante pela forma, linguagem ou coisas assim. Não. Ele é muito bom por ser uma reflexão sobre a fome que nos move para os outros, sobre a pulsação pura de uma animalidade dominante, que há muito tempo não vemos no cinema e na literatura, nesses tempos de sexo de mercado e de amorezinhos narcisistas.

Friday, March 03, 2006

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Oscar sweesptake

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Pelas minhas contas Brokeback Mountain iria levar pelo menos seis dos oito Oscars para os quais estava indicado. Ficou com três.

Meus favoritos para o Oscar eram:

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Filme: Brokeback Mountain
Ganhou: Crash, um filme que fez pouco sucesso no início mas cresceu no boca-a-boca. É sobre a violência entre as pessoas comuns no tráfico em Los Angeles. Imaginem uma versão feita no Rio.

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Diretor: Ang Lee (Brokeback Mountain). Ganhou.

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Ator: Phillip Seymour Hoffman (Capote). Também acertei.

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Atriz: Felicity Huffman (Transamerica). Perdi. Ganhou Reese Witherspoon, fazendo a cantora June Cash no filme sobre Johnny Cash, Walk the Line, um grande sucesso de público e de crítica.

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Ator coadjuvante: Jake Gyllenhaal (Brokeback Mountain). Mas ganhou George Clooney (é covardia) em Syriana.

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Atriz coadjuvante: Michelle Williams (Brokeback Mountain). Perdeu para Rachel Weisz que está ótima no filme do brasileiro Fernando Meirelles, The Constant Gardener.

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Filme de animação: Wallace & Gromit. Acertei, ganhou! Imperdível.

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Direção de arte: minha aposta era King Kong. Perdeu para Memórias de uma Geisha.

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Cinematografia: Apostei em Brokeback Mountain. Também perdeu para Memórias de uma Geisha.

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Figurino: apostei em Charlie and the Chcolate Factory. Perdeu. Mais uma que Memórias de uma Geisha levou.

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Documentário: Apostei em Marcha dos Pinguins. Vitória merecidíssima.

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Edição: Crash. Acertei, ganhou.

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Filme em língua estrangeira: o meu era Paradise now. Perdeu para o sul-africano Tstosi.

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Maquiagem: The Chronicles of Narnia. Acertei.

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Trilha musical: Brokeback Mountain (Gustavo Santaolalla). Yes!

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Canção: In the Deep (Crash). Mas perdeu para It's Hard Out There for a Pimp.

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Efeitos visuais: King Kong. Acertei, ganhou! Venceu também em duas categorias técnicas nas quais não apostei, melhor montagem de som e melhor mixagem de som.

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Roteiro adaptado: Brokeback Mountain. Grande vitória.

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Roteiro original: Good Night, and Good Luck. Perdi. Ganhou Crash.

No total, das minhas 19 apostas, acertei 9. Brokeback Mountain, o favorito com oito indicações, só ganhou três. Crash, a grande surpresa da noite, levou três. E Memórias de uma Geisha, um filme mal visto pela crítica, mas produzido por Steve Spielberg, também três. E King Kong, três. Foi o Oscar mais equilibrado dos últimos anos, reflexo da qualidade dos filmes em competição, o que mostra o amadurecimento do cinema americano, apesar de toda a porcaria que Hollywood continua despejando nas telas do mundo. Pena que um dos melhores dos filmes em competição, Good Night, and Good Luck, dirigido por George Clooney (este, a estrela da noite, com três indicações) não tenha levado nada, mas ser indicado já garante boa distribuição.

Em Brokeback Mountain, as fotos abaixo são da famosa cena do beijo que Michelle Wiliams, mulher do personagem de Heath Ledger, vê da janela. Jake Gyllenhaal contou à imprensa que Heath foi tão violento, jogando-o contra a parede, que quase quebrou o nariz dele. O título do filme poderia ter sido Brokenose Mountain... Mas desfazendo qualquer dúvida sobre a macheza do rapaz, Heath e Michelle se apaixonaram durante as filmagens e tiveram um bebê, Matilda. Jake vai ser o padrinho. Desde que Jake se separou de Kirsten Dunst, está livre. Ele diz que gosta de mulher mas não é preconceituoso. Se aparecer um homem de quem ele goste...

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Clique aqui para mais cenas de Brokeback Mountain
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Mazamet fica perto de Toulouse e Montpellier, no Languedoc, sul da França. Para aprender como Anna Maria aprendeu a blanquette clique aqui.

Blanquete de Veau à a mode de Mazamet

Carne vitela já cortada para blanquette pode-se encomendar no Talho Capixaba, na Ataulfo de Paiva, no Leblon. Facilita muito. Mas por favor, se alguém se candidatar a fazer, em hipótese alguma congele a carne!

Corte a carne de vitela fresca em pequenos bifes. Tempere com sal e pimenta do reino. Junte cenouras cortadas em cilindros do tamanho de um dedo mínimo e salsa. Coloque tudo numa panela. Ferva água que dê para cobrir a carne, a cenoura e a salsa. Coloque a panela no fogo bem baixo e derrame a água fervendo em cima cobrindo tudo e ultrapassando um pouco. Deixe cozinhar em fogo brando retirando (durante todo o cozimento) a espuma que se forma. É chatíssimo, mas é indispensável. A espuma pode ser retirada com escumadeira ou com um coador pequeno. Leva no mínimo uma hora. Quando a carne estiver cozida tire do fogo e passe a carne, a cenoura e a salsa para um prato, deixando na panela o caldo que se formou (marrom claro). Numa outra panela faça um roux da seguinte maneira. Coloque manteiga (bastante) e jogue por cima farinha de trigo, mexendo sempre para não embolotar. Quando se transformar num creme dourado vá acrescentando o caldo que estava na outra panela, mexendo sempre para idem não embolotar. O ideal é usar um fouet. Vai ficar um molho encorpado. Deixe reduzir em fogo brando. Junte a carne, mas não os legumes. À parte misture gemas com uma colher de vinagre e manteiga e vá jogando lentamente sobre a carne e o molho, mexendo sempre. Neste momento pode juntar cogumelos se gostar dos mesmos. Junte a cenoura e a salsa e deixe cozinhar um pouco sacudindo a panela. DEPOIS DE COLOCAR AS GEMAS NÃO DEIXE FERVER EM HIPÓTESE ALGUMA.

Não é um prato bonito, mas é uma delícia. Beijos,

Anna Maria

Thursday, March 02, 2006

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Sépulture

Si par une nuit lourde et sombre
Un bon chrétien, par charité,
Derrière quelque vieux décombre
Enterre votre corps vanté,

A l'heure où les chastes étoiles
Ferment leurs yeux appesantis,
L'araignée y fera ses toiles,
Et la vipère ses petits;

Vous entendrez toute l'année
Sur votre tête condamnée
Les cris lamentables des loups

Et des sorcières faméliques,
Les ébats des vieillards lubriques
Et les complots des noirs filous.

Sepultura

Numa noite escura e mofina,
Se um bom cristão, por caridade,
Atrás de uma velha ruína
Enterrar teu corpo, beldade,

Na hora em que as estrelas cheias
Fecham os pesados olhinhos,
Ali aranhas farão teias
E as cobras terão os seus ninhos;

Tu ouvirás o ano inteiro
Sobre teu crânio bandoleiro
Os gritos aflitos do lobo

E das bruxas esfomeadas,
O amor das velhas taradas
E os complôs dos mestres do roubo.
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O morto alegre

Numa terra cheia de caracol gosmento
Quero cavar eu mesmo uma cova profunda,
Onde possa deitar meus ossos sem tormento
E dormir sem parar, tubarão que afunda.
Odeio mausoléu e odeio testamento;
Em vez de implorar uma lágrima do mundo,
Em vida eu chamaria um corvo nojento
Para sangrar-me todo o cadáver imundo.

Ó verme! negro companheiro mudo e cego,
A ti um morto livre e alegre entrego;
Filósofo jovial, filho da sepultura,

Pela minha ruína entra sem remorsos
E dize-me se ainda há uma tortura
Para um corpo sem alma, morto entre os mortos!

Le Mort joyeux

Dans une terre grasse et pleine d'escargots
Je veux creuser moi-même une fosse profonde,
Où je puisse à loisir étaler mes vieux os
Et dormir dans l'oubli comme un requin dans l'onde.

Je hais les testaments et je hais les tombeaux;
Plutôt que d'implorer une larme du monde,
Vivant, j'aimerais mieux inviter les corbeaux
A saigner tous les bouts de ma carcasse immonde.

Ô vers! noirs compagnons sans oreille et sans yeux,
Voyez venir à vous un mort libre et joyeux;
Philosophes viveurs, fils de la pourriture,

À travers ma ruine allez donc sans remords,
Et dites-moi s'il est encor quelque torture
Pour ce vieux corps sans âme et mort parmi les morts!
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Louvada seja Francisca

Vou cantar-te em Sol e Dó,
Tu que brincas, meu xodó,
Neste coração tão só.

Quero cobrir-te de flores,
Ó mulher dos meus louvores,
Remissão dos pecadores!

No teu Letes benfazejo
Embriagado de beijo,
O teu ímã eu desejo.

No vício e na ruína,
Perdia-me em cada esquina,
Quando vieste, Divina,

Como estrela salutar
Que não deixa naufragar...
Ponho a alma em teu altar!

Lago cheio de virtude,
Nascente da juventude,
Traz a voz ao lábio mudo!

O que era mau, queimaste;
O áspero, alisaste;
O mais fraco, reforçaste.

Na fome, minha taberna,
Na noite, minha lanterna,
No rumo bom me governa.

Põe vigor no meu vigor,
Doce banho de frescor,
Do mais suave odor!

Clareia a virilidade,
Ó cinto da castidade
Tingido de santidade;

Rica taça que faísca,
Pão celeste, fina isca,
Divino vinho, Francisca!


Franciscae meae laudes

Novis te cantabo chordis,
O novelletum quod ludis
In solitudine cordis.

Esto sertis implicata,
O femina delicata,
Per quam solvuntur peccata!

Sicut beneficum Lethe,
Hauriam oscula de te,
Quae imbuta es magnete.

Quum vitiorum tempestas
Turbabat omnes semitas,
Apparuisti, Deitas,

Velut stella salutaris
In naufragiis amaris ...
Suspendam cor tuis aris!

Piscina plena virtutis,
Fons æternæ juventutis,
Labris vocem redde mutis!

Quod erat spurcum, cremasti;
Quod rudius, exaequasti;
Quod debile, confirmasti.

In fame mea taberna,
In nocte mea lucerna,
Recte me semper guberna.

Adde nunc vires viribus,
Dulce balneum suavibus
Unguentatum odoribus!

Meos circa lumbos mica,
O castitatis lorica,
Aqua tincta seraphica;

Patera gemmis corusca,
Panis salsus, mollis esca,
Divinum vinum, Francisca!
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Conversa

Você é um belo céu de outono, claro e rosa!
Mas a tristeza em mim sobe como o mar
E deixa ao refluir, sobre a língua morosa,
A lembrança amarga do sal a queimar.

-- Sua mão nada encontra no meu peito em dor;
O que ela quer, amiga, já foi arrancado
Pelas unhas e dentes ferozes do amor.
Não há mais coração, por feras devorado.

Meu coração, palácio que a ralé tomou,
E ali saqueia, mata, tudo a pó reduz!
A Beleza, flagelo, assim determinou!

-- Um perfume flutua nos seus seios nus!...
Com seus olhos de fogo, brilhantes esferas,
Calcine a cicatriz deixada pelas feras!


Causerie

Vous êtes un beau ciel d'automne, clair et rose!
Mais la tristesse en moi monte comme la mer,
Et laisse, en refluant, sur ma lèvre morose
Le souvenir cuisant de son limon amer.

-- Ta main se glisse en vain sur mon sein qui se pâme;
Ce qu'elle cherche, amie, est un lieu saccagé
Par la griffe et la dent féroce de la femme.
Ne cherchez plus mon coeur; les bêtes l'ont mangé.

Mon coeur est un palais flétri par la cohue;
On s'y soûle, on s'y tue, on s'y prend aux cheveux!
-- Un parfum nage autour de votre gorge nue!...

Ô Beauté, dur fléau des âmes, tu le veux!
Avec tes yeux de feu, brillants comme des fêtes,
Calcine ces lambeaux qu'ont épargnés les bêtes!
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Céu enevoado

Coberto de vapor, teu olhar nevoento,
Olhar misterioso (verde, azul, cinzento?),
Ora sonhador, terno, e ora cruel,
Reflete a indolência e a placidez do céu.

Lembras o dia branco, frio e velado,
Tempo que faz chorar o coração magoado,
Quando na agitação de um mal desconhecido,
Os nervos não têm dó do ser adormecido.

Pareces com a bela paisagem chorosa
Acesa pelo sol na estação brumosa...
Como és resplandecente, universo molhado,
Incendiado pela luz do céu nublado!

Ó mulher perigosa, climas sedutores,
Poderei adorar a névoa, os rigores,
E do inverno implacável saber retirar
Prazeres mais agudos que o gelo polar?



Ciel brouillé

On dirait ton regard d'une vapeur couvert;
Ton oeil mystérieux (est-il bleu, gris ou vert?)
Alternativement tendre, rêveur, cruel,
Réfléchit l'indolence et la pâleur du ciel.

Tu rappelles ces jours blancs, tièdes et voilés,
Qui font se fondre en pleurs les coeurs ensorcelés,
Quand, agités d'un mal inconnu qui les tord,
Les nerfs trop éveillés raillent l'esprit qui dort.

Tu ressembles parfois à ces beaux horizons
Qu'allument les soleils des brumeuses saisons ...
Comme tu resplendis, paysage mouillé
Qu'enflamment les rayons tombant d'un ciel brouillé!

Ô femme dangereuse, ô séduisants climats!
Adorerai-je aussi ta neige et vos frimas,
Et saurai-je tirer de l'implacable hiver
Des plaisirs plus aigus que la glace et le fer?
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O Veneno

O vinho sabe dar à mansarda sem cor
Um luxo prodigioso
E faz surgir um novo templo fabuloso
Na luz do rubro vapor,
Como um pôr-do-sol no meu céu nebuloso.

O ópio faz crescer o que não tem mais fim,
Expande o ilimitado,
Aprofunda o prazer, deixa o tempo alongado
E faz transbordar em mim
Um gozo negro, morno e enevoado.

Mas nada disso vale teu verde veneno
Teu olhar, olhar espesso,
Lago onde meu ser treme e se vê pelo avesso...
Para nesse abismo pleno
Matar a sede, como em sonho enlouqueço.

Não, nada disso vale o milagre brutal
Da tua saliva forte,
Que me faz afundar sem remorso, sem norte,
Na vertigem abissal,
Até me desgarrar pelas praias da morte!


Le Poison

Le vin sait revêtir le plus sordide bouge
D'un luxe miraculeux,
Et fait surgir plus d'un portique fabuleux
Dans l'or de sa vapeur rouge,
Comme un soleil couchant dans un ciel nébuleux.

L'opium agrandit ce qui n'a pas de bornes,
Allonge l'illimité,
Approfondit le temps, creuse la volupté,
Et de plaisirs noirs et mornes
Remplit l'âme au delà de sa capacité.

Tout cela ne vaut pas le poison qui découle
De tes yeux, de tes yeux verts,
Lacs où mon âme tremble et se voit à l'envers ...
Mes songes viennent en foule
Pour se désaltérer à ces gouffres amers.

Tout cela ne vaut pas le terrible prodige
De ta salive qui mord,
Qui plonge dans l'oubli mon âme sans remord,
Et, charriant le vertige,
La roule défaillante aux rives de la mort!
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O Belo Veleiro

Eu quero te contar, feiticeira dengosa,
As muitas seduções de quem é tão viçosa,
E quero pintar a beleza
Que alia em ti infância e madureza.

Quando vais a varrer o ar com a saia larga,
Fazes o efeito de uma bela nau que larga,
As velas pandas, e balança
Num preguiçoso embalo, e rola, e joga, e dança.

Sobre a nuca redonda e os ombros roliços
A cabeça flutua com estranhos feitiços;
Plácida e vitoriosa,
Segues teu caminho, criança majestosa.

Eu quero te contar, feiticeira dengosa,
As muitas seduções de quem é tão viçosa,
E quero pintar a beleza
Que alia em ti infância e madureza.

Teu peito oferecido a erguer a cambraia,
Teu seio triunfante é uma bela alfaia
De contornos claros, bojudos,
Atraindo a luz como lisos escudos.

Escudos provocantes de pontas rosadas!
Alfaia de segredos, coisas delicadas,
Vinhos, perfumes e poções
Que fazem delirar mentes e corações!

Quando vais a varrer o ar com a saia larga,
Fazes o efeito de uma bela nau que larga,
As velas pandas, e balança
Num preguiçoso embalo, e rola, e joga, e dança.

Tuas pernas de escol, sob o pano que agitam,
Os desejos escuros torturam e excitam,
Como duas bruxas que apuram
Num profundo alguidar uma negra mistura.

Os teus braços emulam jibóias lustrosas
E humilhariam figuras musculosas,
Apertando com obsessão
O amante, para gravá-lo no coração.

Sobre a nuca redonda e os ombros roliços,
A cabeça flutua com estranhos feitiços;
Plácida e vitoriosa,
Segues teu caminho, criança majestosa.

Le Beau Navire

Je veux te raconter, ô molle enchanteresse!
Les diverses beautés qui parent ta jeunesse;
Je veux te peindre ta beauté,
Où l'enfance s'allie à la maturité.

Quand tu vas balayant l'air de ta jupe large,
Tu fais l'effet d'un beau vaisseau qui prend le large,
Chargé de toile, et va roulant
Suivant un rhythme doux, et paresseux, et lent.

Sur ton cou large et rond, sur tes épaules grasses,
Ta tête se pavane avec d'étranges grâces;
D'un air placide et triomphant
Tu passes ton chemin, majestueuse enfant.

Je veux te raconter, ô molle enchanteresse!
Les diverses beautés qui parent ta jeunesse;
Je veux te peindre ta beauté,
Où l'enfance s'allie à la maturité.

Ta gorge qui s'avance et qui pousse la moire,
Ta gorge triomphante est une belle armoire
Dont les panneaux bombés et clairs
Comme les boucliers accrochent des éclairs,

Boucliers provoquants, armés de pointes roses!
Armoire à doux secrets, pleine de bonnes choses,
De vins, de parfums, de liqueurs
Qui feraient délirer les cerveaux et les coeurs!

Quand tu vas balayant l'air de ta jupe large,
Tu fais l'effet d'un beau vaisseau qui prend le large,
Chargé de toile, et va roulant
Suivant un rhythme doux, et paresseux, et lent.

Tes nobles jambes, sous les volants qu'elles chassent,
Tourmentent les désirs obscurs et les agacent,
Comme deux sorcières qui font
Tourner un philtre noir dans un vase profond.

Tes bras, qui se joueraient des précoces hercules,
Sont des boas luisants les solides émules,
Faits pour serrer obstinément,
Comme pour l'imprimer dans ton coeur, ton amant.

Sur ton cou large et rond, sur tes épaules grasses,
Ta tête se pavane avec d'étranges grâces;
D'un air placide et triomphant
Tu passes ton chemin, majestueuse enfant.

Wednesday, March 01, 2006

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Café do Brasil
publicado or Hildergard Angel no Jornal do Brasil

A dupla Couple Coffee, formada pela cantora Luanda Cozetti e o baixista Norton Daielo, aportou na terra de Amália Rodrigues fazendo o sucesso que eles sempre mereceram e que o Brasil não soube bancar. Os CDs da dupla, que agora mora em Lisboa, esgotaram nas Fnacs; eles estão nas páginas da Vogue e ganharam críticas de tirar o chapéu em toda imprensa importante do país. A conquista da Europa vai ser uma conseqüência natural e rápida! A título de curiosidade, Luanda tem esse nome porque é filha de ex-guerrilheiros: o padre Alípio de Freitas e Wanda Cozetti, e viveu entre os nove e 15 anos na África, no exílio. Antes disso, morou no Brasil, onde foi criada pela avó e nos fins de semana visitava na cadeia, alternadamente, os pais presos políticos...

Conversa de Botequim

Incompatibilidade de gênios

Tapete mágico

Asa

Dindi


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Money Baby Computer

DINHEIRO NÃO COMPRA FELICIDADE MAS FELICIDADE TAMBÉM NÃO COMPRA DINHEIRO
Groucho Marx

Minha cunhada Luanda avisa que leu numa revista feminina que a felicidade é genética. Por isso, diz ela, todas as Cozettis (ela, a mãe Wanda, a irmã que é minha mulher Angela, a filha Luiza, e nossa filha Teresa) são felizes, não importa o que aconteça, por maior que seja a desgraça - Wanda foi torturada pelos agentes da ditadura por mais de 40 dias e sofreu entre outras sequelas uma dor de cabeça terrível até morrer no ano passado, sem ter recebido a pensão da anistia nem um tostão de indenização. E morreu feliz.

Felicidade, no caso das Cozettis, é que nenhuma delas se faz de vítima nem reclama da vida. São fortes, além de felizes. E ainda por cima fazem a felicidade de quem tem a sorte de conviver com elas. Está nos genes, diz a Luanda. Ela me pediu para dar uma olhada nessa e noutras pesquisas. Li uma tonelada de estudos recentes, os mais contraditórios. É uma indústria, não só a pesquisa do que é a felicidade como a venda de livros para ensinar as pessoas a serem felizes. Então lá vai o resultado da pesquisa:

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David Lykken, psicólogo da Universidade de Minnesota:
A felicidade é genética. Estudando pares de gêmeos, criados separados em situações muito diferentes, descobriu que quando um gêmeo se considera feliz, o outro também o é. Ou seja, nasceram felizes. No início, Lykken argumentou que não adianta tentar ser mais feliz do que você nasceu pra ser. Seria o mesmo, escreveu, do que dormir sobre uma pilha de livros para melhorar o QI.
Depois, diante das críticas que sofreu por ser tão determinista, Lykken atenuou sua posição. No livro Felicidade: a Nahttp://nyontime.blogspot.com/2006/03/caf-do-brasil-publicado-or-hildergard.htmltureza e a Cultivação da Alegria e do Contentamento, afirma que só metade da disposição da pessoa para ser feliz se deve aos genes. A outra metade pode ser cultivada. "A felicidade é influenciada pelos genes mas não é fixa". Uma das conclusões cruciais de Lykken: não são os fatores externos que tornam as pessoas mais felizes - mais dinheiro, melhor aparência, mais sexo, etc - e sim mudanças internas. Ele sugere uma exame de consciência para que a pessoa descubra que coisas interferem mais com sua felicidade, atitudes que a própria pessoa toma que a tornam mais infeliz, e achar jeitos de usar o seu tempo de forma mais útil e agradável. Abraham Lincoln disse tudo: "As pessoas são felizes quando decidem se tornar felizes".

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Marc Caron, Duke University:
Um defeito em um único gene explica a infelicidade. A serotonina é um dos neurotransmissores cuja presença no cérebro é associada ao sentimento de bem-estar, de felicidade. Marc Caron descobriu que uma variação em um só gene em camundongons de laboratório reduz o nível de serotonina entre 50 a 70%. Os ratinhos deprimem. Os pesquisadores estão agora estudando genes humanos para ver se há uma equivalência. Acreditam que nos seres humanos o número de genes envolvidos seja maior.

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Martin Seligman, diretor do Centro de Psicologia Positiva da Universidade da Pensilvânia, presidente da Associação de Psicologia Americana e lançador do movimento Feclidade Autêntica, com 400 mil membros em todo o mundo:
Ele não concorda que a felicidade seja genética, acredita que qualquer pessoa possa ser treinada a se tornar feliz. Para ele, a infelicidade, a depressão é que são genéticas, e é preciso ensinar o cérebro a driblar esse bode natural. O treinamento inclui exercícios como fazer diariamente uma lista das coisas boas que lhe aconteceram, explicando o que você fez para que elas acontecessem; fazer listas e análises dos seus 24 traços de caráter mais positivos e das suas maiores virtudes, dando exemplos; ajudar os outros e exercer a gratidão, escrevendo cartas para pessoas que foram importantes positivamente para você, e lendo-as pessoalmente para o destinatário. Seligman e seus seguidores acreditam que Freu e seus seguidores, todos os psicoterapeutas, tornam o mundo mais infeliz ao focalizarem nos problemas, nas dificuldades, nas neuroses, em vez do lado positivo. Os críticos chamam a Psicologia Positica de pseudociência, ou "terapia da Mary Poppins".

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Ruut Venthoven, Universidade Erasmus de Rotterman, chamado de "o único professor de felicidade do mundo", mantem o website World Database of Happiness, onde podem ser lidos todos os estudos publicados no assunto no mundo (menos os de Seligman e seguidores):
Este holandês não dá muita importância à relação entre genética e felicidade. "Tem gente que acredita que a felicidade é 60% hereditária, mas eu acredito que sejam no máximo 20%", ele diz. Mas a predisposição pessoal à felicidade começa cedo: "Quem é infeliz aos 20 anos tende a morrer infeliz aos 60". Mas entre os 30 e os 50 anos, pessoas que eram felizes tendem a se sentir mais infelizes. É natural, porque neste período se acumulam as responsabilidades com os filhos, dificuldades profissionais e financeiras, etc.
A definição de Veernhoven para a felicidade é simples: " É o quanto as pessoas gostam da vida que leva". Elas sabem, mesmo que não comsigam explicar porque. Heteresoxuais são mais felizes do que homosexuais (tudo isso é baseado num banco de dados de milhares de pesquisas em todo o mundo). Mulheres são tão felizes (ou infelizes) quanto os homens. Pessoas casadas são mais felizes do que as solteiras. Jornalistas freelancesrs (eu!) são mais felizes do que os jornalistas empregados. De modo geral quem não tem um patrão é mais feliz, mesmo que isso signifique trabalhar mais e ganhar menos.
Os mais inteligentes não são mais felizes do que os de baixo QI. Quem assiste mais de três horas de TV por dia - especialmente novelas - é mais infeliz do que quem não assiste. Ter filhos não faz as pessoas mais felizes, e pode fazê-las até mais infelizes.
Veenhoven desenvolveu métodos para comparar os níveis de felicidade em diferentes países. São dados sobre 120 países, acumulados há mais de 20 anos. No momento, estes são os países as pessoas se dizem mais felizes:
Dinamarca e Suíca, empatados em primeiro com nota 8,2 num máximo de 10 pontos
Colômbia, 8,1
Islândia e Áustria, 7,8
Finlândia, México e Austrália, 7,7
Canadá, Guatemala, Irlanda, Luxemburgo, Noruega, 7,6
Holanda e Malta, 7,5
Nova Zelândia e Estados Unidos, 7,4
Bélgica, 7,3
El Salvador, Honduras e Alemanha, 7,2
Grã Bretanha, 7,1
Espanha, 70.
Com 6,8, o Brasil é o 23% país da lista dos mais felizes, empatado com a Argentina.
Se os colombianos estão em segundo, e os salvadorenhos e hondurenhos empatados com os alemães, está provado que ser rico não traz felicidade.
Os mais infelizes, com notas ente 3 e 4, são Armênia, Ucrania, Moldova, Zimbabwe e Tanzania. Países como Iraque e Cuba não entraram na pesquisa.

Outros estudos:
Peter Ubel, psicológo da University of Michigan: Pessoas com doenças e deficiências físicas graves são tão felizes quanto as outras. Os participantes - de um lado os doentes, do outro o grupo de controle - usavam um computador de mão e a cada vez que o aparelho apitava respondiam como estavam se sentindo emocionalmente. Um dado curioso: os pacientes saudáveis não se lembravam, mais tarde, dos momentos em que se sentiram felizes. Mas os doentes lembravam.

Richard Walker, Winston-Salem State University: As pessoas tendem a achar que levaram uma vida feliz porque lembram muito melhor os fatos positivos do que os negativos. Foram entrevistadas 229 pessoas e apenas 17 contaram mais fatos negativos do que positivos. A conclusão é que nosso mecanismo de memória é programado para reduzir a carga emocional das lembranças ruins. Mas nas pesoas com depressão esse efeito não existe, elas lembram igualmente os fatos negativos e positivos. Os pesquisadores destacam que o efeito observado não é o recalque, a amnésia das experiências negativas, descrito por Freud. Os participantes lembravam-se das experiências negativas, mas tendiam a minimizá-las.

Paul Whiteley, diretor do programa de pesquisa de democracia e participação, Grã Bretanha: As pessoas que se dizem mais felizes vivem em comunidades onde o número de voluntários que trabalham em projetos comunitários é maior. Nas mesmas comunidades, a taxa de criminalidade é menor. O fato de a comunidade ser mais rica ou mais pobre não faz diferença. Na Inglaterra, 51% dos cidadãos trabalham em projetos comunitários como voluntários.

Andrew Oswald, Jonathan Gardner, economistas da Universidade de Warwick: A felicidade de uma pessoas com seu emprego não depende do salário e sim do poder que exerce. Testando quase 17 mil pessoas, descobriram que oferecer posições hierárquicas mais altas, mesmo com salários mais baixos, deixa as pessoas mais felizes do que oferecer maior remuneração. A felicidade causada por um cargo de chefia qualquer é 60% maior do que a trazida por um considerável aumento de salário.

Glenn Firebaugh, Pennsylvania State University: O dinheiro não traz felicidade. O que traz felicidade é ganhar mais do que seus colegas, as pessoas da sua faixa etária e nível social. Do mesmo modo, a infelicidade cresce entre aqueles que ganham menos que os seus pares. A renda relativa é o que importa, não a renda absoluta. Resultado: "Os indíviduos se esforçam para ganhar cada vez mais, para consumir e ostentar mais que os outros, o que inclui o aspecto físico, a aparência saudável e jovem, porque precisam disso para manter seu nível de felicidade, por consumirem e ostentarem mais que os colegas, amigos e vizinhos". É uma escalada difícil de vencer, porque os outros estão fazendo a mesma coisa. Para os perdedores, a maioria, os efeitos psicológicos - infelicidade, depressão - são devastadores.

Brandon Wilcox, Seven Nock, sociológos da Universidade da Virginia - Mulheres mais tradicionais são mais felizes no casamento. Aquelas que cujos maridos ganham mais de 68% da renda familiar, que não trabalham fora de casa e que acham que a função da mulher é cuidar da casa e da família são mais felizes do que as outras. Os autores descobriram que até as mulheres de idéias mais avançadas, aqueles que acham que o homem e a mulher devem ganhar igual e dividir as tarefas domésticas, são mais felizes quando na verdade é o marido quem ganha mais e elas não trabalham fora de casa.

Pew Reasearch Center: No mais recente estudo sobre a felicidade dos americanos, 34% se dizem muito felizes, 50% se acham bastante felizes e 15% não muito felizes. Estes números se mantêm há décadas. Mas a grande novidade da pesquisa é que ela derruba a velha máxima (pelo menos nos Estados Unidos, um país que se considerava igualitário), de que o dinheiro não traz felicidade. Metade das famílias que ganham acima de 100 mil dólares por mês se consideram muito felizes, contra apenas 34% das que ganham menos de 30 mil. Algumas outras constatações da pesquisa; quem vai à igreja é mais feliz do que quem não vai; casados são mais felizes do que solteiros; os ricos mais felizes do que os pobres; os republicanos mais felizes do que os democratas (afinal, são mais ricos); brancos e hispânicos mais felizes do que os negros.
E tem mais: ter filhos não traz mais felicidade do que não ter. Possuir animais domésticos também não. E os aposentados não são mais felizes do que quem trabalha.