Sunday, February 19, 2006
Mazamet, terra da blanquette de Anna Maria
SUA BLANQUETTE É PATÉTICA
Anna Maria Ribeiro
Esta frase inusitada e pretendida como um insulto – pasmem - me foi dirigida por um amigo! Dizem, e nem sempre rezo por esta cartilha, mas dizem que pela boca dos amigos verdadeiros sabe-se a verdade. Neste caso embora se trate de um amigo de fé, tenho certeza e há muito tempo, a verdade não se revela. A bem desta verdade, tão invocada neste início, foi este meu amigo levado a esta espúria declaração pelo pecado capital da Inveja. Não admitindo se render à qualidade da blanquette de veau que faço há anos, e que ele só recentemente tentou executar, procurou denegri-la. Isto por que ele, misto de jornalista e cordon bleu nas horas vagas, orgulha-se de ter produzido uma que tem assinatura. Isto é, a receita da blanquette lá dele foi publicada em veículo de mundial circulação. A minha não! Tem origem numa pequena cidade do sul da França onde os habitantes, mais afeitos ao patois que ainda se fala na região, não vêem (nem querem ver) suas receitas centenárias distribuídas ao nível mundial por um jornal americano. Aqui uma curiosidade que nada tem a ver com a blanquette: diz-se que nesta cidade quando o trem pára na estação o chefe, aos gritos, faz a seguinte declaração, fazendo soar a frase com um “tte” ao final das palavras: Mazamette! Cinq minuttes d’arrette. Bufettes derière les cabinettes. Mas voltando a Mazamet e à minha blanquette: faz tempo que recém casada me foi ensinada a receita por uma habitante desta cidade coincidentemente, madrinha de meu marido. Marraine, como a chamávamos, era uma extraordinária cozinheira, como o eram Mami (minha sogra) e Tatá Lili (sua irmã), todas nascidas e criadas em de Mazamet. Entre elas fizeram um pacto para formar esta bugre que vos fala nas artes da cozinha. Devo a elas a maneira por que hoje me desembrulho neste departamento. Entre citações de Proust e de Pierre Loti passei horas tentando acertar, sob a severa orientação das três – acreditem - o ponto e a forma exata de um ovo poché!!. Minha sogra era tão requintada que em sua cozinha havia uma tesoura que era usada única e exclusivamente para cortar os fiapos deste ovo dotando-o de uma forma mais que perfeita. Não consegui chegar a isto. Quem sabe quando eu ficar grande... Todas as vezes que tento fazê-lo soam em meus ouvidos as exclamações: Voyons! Il faut faire attention, ma petite! Comme tu est maladroite! Conheci meu marido tinha eu uns 7 anos. Naquela época ele não me encantou nem um pouco! Ao contrário era um garoto chatíssimo que tinha um pônei (também sofri de inveja, meu querido. È terrível!) e se vestia como o Pequeno Príncipe de quem tinha os cabelos louros, lisos e revoltos. Mas mesmo tendo que aturá-lo eu ia constantemente a seu sítio em Miguel Pereira para onde eu me sentia irresistivelmente atraída por um sanduíche de pão quente com uma barra de chocolate que me era oferecido por aquela que mais tarde atenderia pela denominação de sogra. E, delícia das delícias, por um copo de vinho misturado com água e açúcar que me era oferecido no almoço. Outro parêntese: o sítio chamava-se Lustalu que quer dizer casa pequena em patois. E foi em Lustalu, muitos anos depois, que a blanquette fez parte de minha pos-graduação. Não que fosse complicada a confecção. Mas revestia-se de uma importância conferida pela tradição construída em centenas de anos. E é aí que a coisa pega para este meu amigo. A minha blanquette tem história. Tem passado. Gerações e gerações a degustaram. Tem berço, querido! Fico imaginando o que ocorrera com você quando souber que faço uma sauce aïolli digna do Olimpo. Além do pecado da inveja vai incorrer no da Ira? Praza aos céus que não porque te quero digno do Paraíso e pecado mortal é coisa séria! Para piorar a situação a mulher de meu amigo gosta mais de MINHA blanquette! Disto não sou responsável embora seja realmente muito melhor. Sei que a esta altura ele (e possivelmente algum leitor que ainda gentilmente tem ânimo para ler esta enxurrada de crônicas que produzo) vai pensar que estou incorrendo no pecado do Orgulho. Longe disto. Sou até humilde, mas é fato comprovado que MINHA blanquette é muitíssimo melhor. Para ser justa, considerando o elenco de Pecados Capitais, é possível ela faça com que os comensais incorram em pelo menos três outros deles: a gula, a luxúria e a preguiça. No primeiro ao comerem em demasia não conseguindo parar depois que a fome foi saciada; no segundo ao sentirem um prazer proibido que vai muito além do gustativo; e no terceiro depois derrubados numa confortável poltrona após sua ingestão. Não espero e nem exijo uma retratação de meu amigo. Sou magnânima e compreendo perfeitamente sua explosão que poderia ter sido minha caso minha blanquette fosse inferior à sua. Tenho a certeza que mesmo sendo infinitamente melhor, continuaremos amigos até o fim de nossos dias. Provavelmente até o fim dos meus porque sou muitíssimo mais velha. Mas até lá, e pela eternidade, lego aos meus descendentes como uma herança a certeza de que MINHA blanquette é de fato melhor do que a dele. Deixo de registrar aqui a resposta que seria digna de sua imprecação, título desta, porque não fica bem uma senhora de minha idade, aos gritos, como ele o fez, proferir: Patética é a...
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