Sunday, February 19, 2006

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EM DEFESA DE JULIA CHILD

Anna Maria tem toda razão de reagir aos meus insultos invejosos. É claro que a blanquette dela é não só tradiconal como deliciosa e minha mulher Angela sem nenhuma dúvida continua considerando a da Anna muito melhor do que a que eu faço (embora seja verdade que Elaine Louie disse que nunca comeu uma tão boa quanto a minha, mas é claro que nunca provou a da Anna - e não estava com a faca no pescoço, como eu escrevi de brincadeira).

Mas apesar de toda a tradição de Mazamet e da Marraine tão encantadoramente descrita pela Anna Maria, preciso defender a criadora da receita da blanquette que eu faço, Julia Child. Não é, como a Anna Maria entendeu, uma receita do New York Times. A confusão veio do fato de que Elaine trabalha no jornal, onde aliás publicou a receita de feijoada da Angela, eleita uma das melhores receitas de 2004 e republicada no livro Best American Recipes of 2004.

Julia Child, née McWilliams em 1912, falecida em 2004, foi uma espiã americana durante a Segunda Guerra, no Ceilão, onde conheceu outro espião, Paul Child, com quem trabalhou no mesmo ramo na China. Os dois voltaram aos Estados Unidos onde se casaram em 1946. Paul tornou-se diplomata e o casal se mudou para Paris, onde Julia se formou na mais famosa escola de culinária de Paris, Le Cordon Bleu.

De volta aos Estados Unidos, Julia se dedicou a ensinar a cozinha francesa aos americanos. Seu livro Mastering the Art of French Cooking, 734 páginas, publicado em 1961, é até hoje um best-seller. Recentemente, uma jovem aqui de New York, Julie Powell, fez um blog contando a experiência de executar todas as receitas do livro de Julia ao longo de um ano, o que resultou num novo best-seller, Julie/Julia.

O programa de TV de Julia Child, The French Chef, estreou na tevê educativa americana em 1963 e está no ar até hoje, agora em reprises. Julia gravou o programa até morrer aos 91 anos. Hilariante, com uma voz aguda estranhíssima, extremamente alta (1m85) e curvada, com cabelos armados com laquê, desastrada com as panelas mas rigorosa em relação aos métodos e técnicas ancestrais da cozinha francesa, Julia se tornou uma das figuras mais populares da cultura americana, durante mais de 40 anos.

Seus 17 livros, e principalmente os programas de TV, ensinaram os americanos a comer e a cozinhar. Se deve a ela, em grande parte, a alta qualidade dos restaurantes nos Estados Unidos que se dedicam à culinária francesa. Ela criou um público exigente que sabe a diferença entre um molho béchamel e um vélouté (a base é a mesma, manteiga e farinha de trigo, mas o béchamel leva leite enquanto o vélouté leva o caldo do que ele acompanha, o da blanquette, por exemplo).

Quando Angela pendurou o avental há quatro anos, me vi numa situação difícil. Queria aprender a cozinhar, mas Angela não tem paciência para ensinar. Nossa vizinha Nelita Lécléry deu a solução: o último livro de Julia Child, Julia's Kitchen Wisdom. Em apenas 125 páginas, ela ensina todas as técnicas básicas para cozinhar qualquer coisa, carnes, peixes, legumes, ovos, sobremesas, tudo.

Julia é exigente. Há trechos em que ela lembra ao cozinheiro de primeira viagem que cozinha é trabalho, huile de coude como dizem os franceses - óleo de cotovelo. As receitas são em geral simples e rápidas, mas as melhores, como a da blanquette, são muito trabalhosas.

É claro que eu fiz uma brincadeira de péssimo gosto inventando que criei Daisy, minha própria vitela. Foi pura provocação. Mas Julia de fato recomenda assar ossos de vitela e depois fervê-los por quatro horas para fazer o caldo. Eu fiz isso uma vez e é uma maravilha. Mas sou preguiçoso, por isso já compro o caldo de vitela pronto na deli em frente de casa.

A diferença entre as outras blanquettes que eu comi e a da Julia Child é que o molho vélouté tem uma consistência cremosa e o sabor do prato é mais acentuado. Vitela é uma carne sem gosto, daí todo o segredo está no caldo e no molho - e, no caso da receita de Julia, nas cebolinhas e champignons que acompanham.

Enfim, a blanquette de Anna é maravilhosa e tem história mas a da Julia Child não fica muito atrás, num outro diapasão, talvez menos refinado mas igualmente válido. Certamente se Julia provasse a minha blanquette não aprovaria. Ela tinha um assistente, o francês Jacques Pépin, que acabou virando um chef famoso com seu próprio programa de TV. Os dois se encontraram poucos anos antes da morte de Julia para uma série de programas. Jacques fazia o diabo para agradar a mestra. Julia provava, dava um risinho, sacudia a cabeça e dizia apenas: "Está OK". Ela era fogo.

Esta semana vou fazer outro carro-chefe da Julia, o Boeuf Bourguignon. O embaixador Marcos de Vicenzi, um apreciador deste prato, diz que o meu é o melhor que ele já comeu. Aliás, Anna Maria, o presidente FHC anda dizendo por aí que a moqueca que eu fiz pra ele é a melhor que ele já comeu. Nossa, como eu sou patético!

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