Wednesday, February 01, 2006

NEGÓCIO DA CHINA

Entrevistei para o Sem Fronteiras da Globo News, que foi ao ar na quinta-feira 2/2, a diretora da organização Human Rights Watch, Carroll Bogert. Antes de entrar para a HRW em 1998, Carroll foi correspondente internacional da Newsweek. Viveu na China e cobriu o massacre na praça Tiananmen em 1989. Depois foi correspondente em Moscou, no fim da União Soviética. Fala chinês (mandarim) e russo, fluentemente. A HRW é a maior organização de direitos humanos dos Estados Unidos, mantida por doações dos seus membros. É independente e muito crítica em relação ao governo Bush. O último relatório anual da HRW afirma que o fato mais grave na área dos direitos humanos em 2005 foi o abuso de prisioneiros pelos Estados Unidos. A China está há muitos anos sob a mira da organização.

O gancho do Sem Fronteiras foi a notícia de que a China cresceu tanto, em 2005, que saltou para a posição de quarta maior economia do mundo, depois de EUA, Japão e Alemanha. Em poucas décadas, a continuar nesse ritmo, será a maior. Achamos importante mostrar neste programa que por trás do milagre econômico chinês existe uma situação de repressão muito grave a todo tipo de direito: trabalhista, de informação, expressão, religião, etc. Carroll falou sobre isso. A base do milagre chinês está nos baixos (baixíssimos) salários e na proibição de organizações sindicais livres. Os trabalhadores não têm como protestar contra a exploRação a que são submetidos.

Eu cá acrescento, muito cá entre nós, que esta é uma perversão fantástica de dois sistemas, o capitalista e o comunista. O milagre chinês virou o novo motor do capitalismo global, permitindo lucros recordes para as empresas que transferem a produção para a China, quase todas as multinacionais. Mas isso só é possível porque o partido comunista controla o estado de forma antidemocrática. A China não é um estado de direito. O cidadão não tem direitos, o estado é todo-poderoso.

Carroll deu exemplos: em 2004, houve 74 mil manifestações de protesto na China, envolvendo 3,5 milhões de chineses. Na maioria, manifestações de trabalhadores contra condiçõoes de trabalho desumanas. O número de protestos em 2005 ainda não foi divulgado, mas é maior. Os chineses protestam contra excesso de horas de trabalho, condições de trabalho tóxicas, corrupção de dirigentes empresariais e autoridades locais, péssima moradia e transporte ainda pior, etc. Invariavelmente estas manifestações têm sido tratadas como ataques ao estado e suprimidas com violência. Milhares de pessoas foram detidas e condenadas a longas penas de prisão. A China é a campeã mundial em execuções de prisioneiros, e não existe um poder judiciário autônomo. Muitos dissidentes são trancados em hospitais psiquiátricos para serem “tratados”. Não há liberdade de religião. Há cerca de 40 padres católicos presos por tentarem rezar missas fora do esquema autorizado pelas autoridades. As minorias étnicas – tibetanos, uigurs, etc – são perseguidas.

Não existe jornalismo na China. A censura é como a que nós conhecemos no Brasil na ditadura e a atividade jornalística é estritamente controlada pelo governo, ou seja, não é o que chamamos hoje de jornalismo. Uma novidade é o controle sobre a Internet. Carroll disse que o governo chinês teme que a Internet sirva para que os dissidentes se comuniquem e formem uma coalizão. Daí a vigilância sobre emails e acesso à rede. Para operar na China, o maior mercado em expansão, as grandes empresas como Microsoft, Google e Yahoo têm que se comprometer a colaborar com as autoridades e fornecer informações. Assim, o governo obteve através da Yahoo o nome do jornalista que estava dando notícias sobre a presença, na China, de pessoas que tinham ido lembrar os 15 anos de Tiananmen. Shi Tao, o jornalista, foi detido e está cumprindo pena de 10 anos de prisão.

Carroll disse que o próprio sistema chinês cria o que mais teme: o caos, luan em chinês. Como não há partidos, sindicatos, sociedade civil organizada, quando alguém não suporta a situação e quer protestar o jeito é ir para a rua e enfrentar a repressão. É luan, o caos.

Mas Carroll está otimista em relação à China. O dinamismo do país é a razão do otimismo. Nos últimos anos, muita coisa mudou. Em 2004, o respeito aos direitos humanos foi pela primeira vez incorporado à constituição chinesa. Não é um princípio posto em prática, mas é um avanço. Já se discute publicamente a questão dos direitos e da democracia. Apesar da repressão, a população chinesa passou a ter coragem de ir para a rua protestar. Mas, no fim do ano passado, pela primeira vez desde Tiananmen, a polícia atirou contra manifestantes, matando muita gente.

Não há ainda um acerto de contas com o passado. Falar do que aconteceu em 1989 é tabu. O partido comunista nunca explicou o massacre, nunca assumiu a responsabilidade pela morte dos estudantes que pediam democracia.

Mas a China está mudando rapidamente. O crescimento econômico, a abertura para o mundo, não têm o efeito automático de provocar mudanças políticas – até porque o milagre econômico se deve à repressão – mas em termos individuais os chineses são muito mais livres para viajar, ganhar dinheiro, abrir empresas, melhorar de vida.

O que isso quer dizer para o resto do mundo? Afinal, em poucas décadas a China vai se tornar a maior economia do mundo e tem tudo para dominar a segunda metade do século XXI. Se não acontecerem mudanças políticas significativas, o que será a hegemonia chinesa?

Pequim, hoje, bloqueia na ONU a investigação de graves violações dos direitos humanos em países como o Sudão, que comete genocídio contra a população negra da província de Dafur, o Uzbequistão, a Birmânia e muitos outros. Protege o Irã e seu programa de armas nucleares. O pior é que o governo dos Estados Unidos, que sempre pressionou a China para que ela se abra politicamente, parece ter se desinteressado porque o mais importante é preservar os bons negócios com os chineses.

Carroll lembra que os cidadãos americanos continuam muito engajados na causa dos direitos humanos na China. Por isso, Bush é obrigado a pressionar os chineses, embora aparentemente sem qualquer efeito. Todos os países que têm comércio com a China – ela inclui o Brasil – deveriam ter na sua pauta bilateral a questão dos direitos humanos.

E eu cá, muito cá entre nós, acrescento: o Brasil viveu sob uma ditadura militar que fabricou um milagre econômico à custa de repressão aos direitos trabalhistas. Hoje temos um presidente que surgiu como resistência a essa repressão. Seria de se esperar que o Brasil, do qual a China depende para o fornecimento de matérias-primas como o minério de ferro, usasse esta parceria para defender valores que nos são caros, como a liberdade sindical. Mas não. O neo-PT, como sempre, só vê o interesse imediato. No caso, lucrar com o negócio da China.

Carroll Burnett disse na entrevista que todos os países que comerciam com a China e prezam os direitos humanos têm obrigação de ajudar os chineses a mudar na direção certa. Por causa da pressão de americanos, canadenses e europeus a China começou a mudar na área dos direitos humanos. Será que o Brasil não tem interesse em entrar nesse jogo?

Talvez não. Afinal, é moda no Brasil defender o regime de Fidel Castro, outro que desrespeita os direitos democráticos com se fossem coisa do “inimigo ianque”, sem que o Brasil se sinta incomodado

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