Wednesday, December 07, 2005



O que aconteceu com Salman Rushdie? O último livro dele, Shalimar the Clown, é um tremendo fracasso de vendas. Apenas 26 mil exemplares, o que no mercado americano não é nada – menos de 100 mil não conta. Será que é porque foi lançado antes no Brasil?
Eu adorava Salman Rushdie desde que li no, fim dos 90, The Moor’s last sigh. Um romance deslumbrante. Corri pra ler outros e gostei muito de Midnight’s Children e Shame. Já Satanic Verses me irritou. Mal construído, longo demais, com momentos brilhantes mas no conjunto bem pior que os outros. Foi justamentre o livro que levou à absurda fatwa do aiatolá Khomeini condenando Rushdie à morte, não pela má qualidade literária, mas por blasfemar contra o profeta. Leitores e escritores no mundo todo se uniram para repudiar a fatwa. Alguns tradutores do livro foram assassinados. O caso serviu para dividir de um lado as pessoas de bem, que deram apoio incondicional a Rushdie, do outro os canalhas que apoiaram Khomeini, entre eles o escritor John le Carré.
Durante oito anos, Rushdie viveu escondido, protegido por policiais ingleses. Em 1996, aqui em New York, minha mulher Angela encontrou Rushdie sozinho num bar e acendeu o cigarro dele. “Você é louca!”, eu me espantei. “Podia ter explodido!"
Ao contrário do que se pensa, a fatwa continua em vigor, mas por baixo do pano o governo iraniano negociou com o governo inglês e retirou a oferta de recompensa de 3 milhões de dólares pela morte de Rushdie, que voltou a aparecer em público em 1998. Desde essa época ele vive em Nova York, onde se casou com a belíssima atriz Padma Lakshmi.

Salman e Padma

Ter virado celebridade não fez bem a Rushdie. Tornou-se figura fácil da A-list de New York. Vendo-o falar, nas várias palestras que assisti, a pose dele é de quem se considera o maior escritor do mundo. Infelizmente os dois últimos livros antes de Shalimar, The Ground beneath her feet e Fury, são péssimos. Os primeiros livros fulguravam com fogos-de-artifício verbais. Os últimos são uma sequência de clichês mal alinhavados. Rushdie ficou Pop. Resolveu parodiar o estilo do “jornalismo” americano centrado em celebridades. Glamour, glitz, buzz são as palavras chave. Um brilho de superfície sem substância. E ainda por cima ele ficou moralista, agora que é o porta-bandeira contra o islamismo radical. Tem todo o direito de atacar os fundamentalistas, coberto de razão em muitos pontos, mas a literatura dele deixou de ser arte para virar um requentado de slogans. O texto perdeu a vida. Por isso não me surpreende o fracasso de Shalimar, que não li.
O problema de Rushdie é comum a todos ou quase todos os escritores que vendem muito e viram celebridades. Conheço um, dos mais bem-sucedidos, que vive em pânico, apavorado com a possibilidade de que aconteça com ele o que aconteceu com Rushdie: de repente parar de vender e de ser lido. Pode acontecer com qualquer um e aconteceu com muitos. Quem se lembra de Pearl S. Buck, Lin Yutang e Mika Waltari? Na geração dos meus pais estavam entre os mais lidos e famosos. Hoje, não só ninguém ouviu falar deles, como é difícil achar os livros até em sebos. E como não chega a ser literatura, não são estudados na universidade e ninguém escreve biografias sobre eles. Lamento ter perdido meu tempo na adolescência lendo essas bobagens, mas li. Falavam de mundos exóticos e fascinantes, um pouco como Salman Rushdie hoje. Mas ainda não consigo aceitar que Rushdie tome o mesmo destino. Os primeiros romances dele têm qualidade.
Se não ficaram nem os sucessos dessa época recente, na qual ler livros era um hábito comum, o que será do que se escreve hoje? A fragmentação e irrelevância dos textos a se multiplicarem vertiginosamente – e eu como um dos milhões de blogueiros do mundo contribuo para isso – faz lembrar o futuro inventado por Herman Hesse (outro que saiu de moda) no romance Magister Ludi. Hesse criou o “jogo das contas de vidro” (título do livro em português e inglês) para tentar recuperar o sentido e a sabedoria perdidos. Um projeto tão datado quanto o dos utópicos do passado.
Frequento universidades americanas para entrevistar professores, em geral gravando em bibliotecas espalhadas pelos vários departamentos. São livros doados por catedráticos falecidos. Invariavelmente, títulos que não interessam a mais ninguém, especialmente na área de ciências humanas – mas imagino que nas ciências exatas seja ainda pior. Resultado de anos de pesquisas e de vidas inteiras, encalhados em estantes poeirentas de onde nunca sairão, a não ser para o incinerador. Esta semana estive no departamento de Ciência Política da augusta Columbia University. A coleção na biblioteca era de um professor dos anos 40 e 50. Não encontrei um único tomo de interesse. Alguns são hilariantes: “La France Avait Raison”, escrito em 1945, sobre o período pós-Grande Guerra, e “The Monarchy is Perfect”, de 1958, sobre a realeza britânica, que segundo o autor é a única coisa sagrada que une os súditos.
Mas é melhor ter milhões de livros irrelevantes do que livro nenhum. Então, que os Rushdie e outros aproveitem seu momento de fama, que passa tão rápido, para nos afogar em textos nos quais, quem sabe, alguém encontrará beleza e sentido.

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