Monday, December 03, 2007
Só agora estreou aqui O Escafandro e a Borboleta, o filme francês do pintor novaiorquino Julian Schnabel, em cartaz no Brasil desde outubro. Está cotado para o Oscar e merece (Schnabel levou Melhor Diretor em Cannes, foto no fim deste post).
Não li o livro do jornalista Jean-Dominique Bauby (foto abaixo), editor-chefe da revista Elle, publicado em 1997 e traduzido com sucesso no Brasil, e agora quero ler. Ele ficou paralisado depois de um derrame, com uma síndrome chamada locked-in, ou seja, trancado dentro. A pessoa permanece consciente mas sem qualquer atividade muscular voluntária, presa no próprio corpo. Paralisado, Jean-Dominique não fala mas movimenta a pálpebra esquerda (a direita foi costurada porque o olho poderia infeccionar). Com a ajuda de uma terapeuta da fala, ele aprende a piscar o olho para ditar letra a letra, um processo demorado e exasperante, e assim ele consegue ditar o livro.
Contado desse jeito, parece um filme deprimente. Mas não é. Schnabel faz da camera o olho de Jean-Dominique. A gente vê o que ele vê, por esse único olho. Quando ele chora a camera fica embaçada. A gente ouve a voz de Jean-Dominique, mas é só o pensamento dele. As pessoas que estão em volta, que aparecem diante do olho, não sabem o que ele pensa. Aos poucos, piscando - e a camera também pisca - ele consegue se comunicar com as terapeutas, a ex-mulher, os filhos, os amigos. Não sai do hospital da Marinha, situado numa cidade de praia e especializado em reabilitação. Mas descobre a liberdade na memória e na imaginação.
Schnabel encena os sonhos, devaneios e fantasias de Jean-Dominique, imagens que o mantêm vivo. Nos outros filmes dele, Basquiat e Antes que Anoiteça , Schnabel mostrou seu estilo visual mais ligado à pintura do que ao cinema contemporâneo. Não tem nada a ver com os efeitos especiais de Hollywood. Lembra às vezes Glauber Rocha e o cinema dos anos 60, ou o cinema surrealista de Jean Cocteau. Mas nada é gratuito ou experimental. Suas imagens surpreendentes são vitais para a história de Jean-Dominique, são a expressão visual dos textos que ele dita ao longo do filme.
Tive um médico que recomendava como tratamento para depressão visitar doentes terminais no hospital. Segundo ele, nada como a desgraça alheia para alegrar a gente. Ainda bem que me livrei dele a tempo. O filme de Julian Schnabel é ótimo para curar depressão, mas não por esse motivo torpe. É que para não sucumbir ao escafandro (a prisão dentro do próprio corpo), Jean-Dominique voa com os borboletas da memória, da imaginação e da fala - mesmo sem voz. A voz, a fala, transcendem o corpo. Basta uma pálpebra para falar e escrever.
Numa das melhores cenas do filme, a logoterapeuta Henriette (a maravilhosa atriz Marie-Josée Croze, foto abaixo) anota as primeiras letras ditadas por Jean-Dominique e compõe a frase dele: "Quero morrer". Ela se rebela, não aceita que ele se entregue, não lhe dá esse direito. Nós estamos vendo a cena pelo olho de Jean-Dominique e é incrível como ele reage, exatamente como nós, diante da avalanche emocional de Henriette.
O que salva Jean-Dominique é a decisão que ele toma a partir daí: não vai mais sentir pena de si mesmo. Se fazer de vítima seria fatal.
O humor de Jean-Dominique, a graça que ele vê nas mínimas coisas, sobretudo no próprio sofrimento físico ("Limpam o meu bumbum como o de um bebê"), é uma experiência comum vivida pelas pessoas em situações extremas, diante da morte. E o roteiro de Schnabel permite que esses momentos de grande humor surjam naturalmente, o que faz desse filme um dos mais alegres e otimistas que vi nos últimos tempos. Um exemplo: dois homens da companhia telefônica vêm instalar um telefone pedido por Jean-Dominque para se comunicar com a família. Eles se surpreendem ao ver que o paciente não pode falar e um deles não resiste, pergunta se ele é daqueles tarados que gostam de dar trotes arfando ao telefone. A acompanhante fica indignada com a falta de respeito. Mas Jean-Dominique, em silêncio, dá gargalhadas. E nós, que ouvimos o pensamento dele, rimos junto.
O ator Mathieu Amalric (foto abaixo), que foi o ótimo Louis do filme Munique de Spielberg, é um achado como Jean-Dominique. O papel seria do grande Johnny Depp, que acabou deixando Schnabel na mão para filmar Os Piratas do Caribe III. Não fez falta. A leveza e a irreverência de Amalric, com cara de menino encapetado, são perfeitas para o personagem. Uma das características de Jean-Dominique é a irreligiosidade ("Milagres não!", ele implora quando todo mundo começa a rezar em volta dele). Outra, a paixão pelas mulheres ("Essas gatas dando sopa e eu aqui paralítico!"). E ainda, o amor pelos três filhos pequenos, que o visitam mas com quem não pode mais brincar. Há também a reconcilicação com o pai (o genial Max von Sidow), uma figura distante e autocentrada, que finalmente tenta se aproximar do filho. Sem pieguice nem chavões, em poucas pinceladas Schnabel constrói o protagonista como um sujeito decente, gostável. É bom estar dentro da cabeça dele, vendo o mundo por aquele olho.
Uma das graças do filme é ver como os médicos e as pessoas em geral tratam o doente indefeso (no caso, totalmente, pois sequer pode falar), visto como criança, incompetente, totalmente passivo. Os médicos dizem a Jean-Dominique como ele deve estar se sentindo péssimo (ele agradece), falam barbaridades, e as pessoas em volta tendem a tratá-lo como se ele não estivesse presente. É como os bebês e os velhos são tratados, como se não tivessem vontade própria, não são pessoas. É incrível estar na pele de Jean-Dominique, dentro da cabeça dele, e ver como essas coisas acontecem, sem que ninguém se dê conta, a não ser a vítima. É extraordinário. Ele está vendo um jogo de futebol na TV, torcendo por um gol que não vem, quando o enfermeiro entra, apaga a TV e sai. Não tem conversa, nem piedade. O mundo é assim. São esses detalhes do cotidiano que fazem do filme um relato comicamente e dolorosamente real. Como a vida.
O filme já entrou em muitas listas de favoritos para o Oscar mas há quem diga que não pode concorrer por ser uma produção americana (ou franco-americana) falada em francês. A França escolheu outro filme, o longa de animação Persépolis, para concorrer ao Oscar de melhor filme em língua estrangeira. Mesmo que não concorra a melhor filme, podem sair indicações para melhor diretor (Schnabel), melhor ator (Mathieu Amalric), melhor roteiro (Ronald Harwood, O Pianista)e Janusz Kaminski (o diretor de fotografia de muitos filmes de Spielberg).
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4 comments:
Que delícia de texto, Jorge. Já falei: você deveria também enfrentar a crítica cinematográfica que anda mais para a indigência por aqui. Os criticos não falam do que vêem e sim da erudição (não cultura!)deles próprios numa avalanche de citações e comparações exdrúxulas. Vontade de ver o filme,vontade de conversar com você sobre.
Beijos
Anna Maria
Oi Jorge, tudo bem?
Faz tempo que eu não passava por aqui!
Li faz alguns anos o livro que serviu de base para esse filme. Foi presente de um amigo, palhaço e malabarista. Ele andava super deprimido. Quase morrera de tifo, durante uma tournée na Índia. Tinha se separado da companheira, com a qual ainda trabalhava...
Na época, não tinha o hábito de ler livros como esse, que, preconceituosamente, eu classificava como um possível best-seller de fácil leitura.
O fato é que, como você, achei incrível a presença do bom humor em uma pessoa tão debilitada e me emocionei até as lágrimas com os "quiproquós" gerados pela falta de comunicação (e de tato) do pessoal da área da saúde. Isso é tão comum, não acha?
Mas, obrigada por me fazer ver a importância da terapeuta. Engraçado, pouco me lembrava dela!
Quando esse filme passar na minha cidade, não vou perder!
Um forte abraço, Rz
Oi Jorge!
Que bom que vc voltou a postar. Fiquei uns dias sem aparecer e encontrei um monte de novidades. Adorei este seu post sobre o filme. Ao final, estava ansiosa para ver. A história e a sua narrativa são 10!
Abraço!
Jorge, os deuses nos livrem da depressão.
Xôooooooooooooo
:)
Um ano feliz para vc, cheio de alegrias, mais alegrias que tristezas.
Bjs Laura
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