Recebi este texto do amigo Joaquim Assis. Foi publicado no site da Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro, SPCRJ.
Pequeno diário de um doente terminal
15 de Maio / Domingo
Na semana passada, o médico da manhã – o nome, embora na ponta da língua não me vem à cabeça - sugeriu que eu escrevesse para me distrair. Gostei do conselho, provavelmente por conta da simpatia do rapaz, muito mais atencioso que o médico da tarde, sujeito desagradável e sombrio, do qual não me interessa saber nada. Lembrei-me, o médico da manhã chama-se Ademar, doutor Ademar Pertan. Pelo modo de sentar à cabeceira da cama, pelo sorriso franco, pela maneira concentrada como examina, pelo toque suave das mãos, já dá para perceber a pessoa que é. Podia ser meu neto, e me agrada pensar nele assim, como o neto querido que não tive. Sempre me pergunta onde dói e parece que só de ouvir sua voz as dores diminuem, submissas. Cessar, elas não cessam nunca, as dores. Hoje fazem parte de mim, do que eu sou, daquilo que sobrou do que eu era. Sei perfeitamente que o Ademar, como eu, não alimenta qualquer esperança de cura para o meu caso. Justamente por isto é notável o tempo gasto comigo por um homem tão ocupado, com três empregos e um consultório, segundo ele mesmo me disse. No dia seguinte àquela sugestão, ele me trouxe este caderno e a caneta com que escrevo. Mas escrever o quê doutor? - Qualquer coisa, lembranças, desejos, pensamentos, o que lhe der vontade, quando lhe der vontade.
16 de Maio / 2a feira
Odete, minha filha, veio com o marido, ao anoitecer. Trouxeram maçãs e ficaram quarenta minutos. Falou-se pouco. Ela sorriu para mim no meio de um longo silêncio, e fingiu não perceber quando disfarcei a emoção. Escrever realmente me faz bem, embora me canse. Antes pouco do que nada.
18 de Maio / 4a feira
Se não estivesse doente, teria ido cantar no coro, com sempre fiz às quartas-feiras, durante mais de vinte anos. Eu sou tenor e canto bem, cantava. Pensar nisto me causou uma dor fina, aguda, esguia, quase elegante.
19 de Maio / 5a feira
Um pensamento estranho me chegou de madrugada: eu sei sofrer com dor e sei sofrer sem dor, sendo que sem dor é mais doloroso, por ser essencial. Na verdade não é um pensamento, é uma constatação, e nada tem de estranha. Mais tarde, mostrei ao Ademar isto que escrevi acima, e ele gostou. Gostei dele ter gostado e, aproveitando, parei de sofrer, apesar das fortes dores no estômago.
23 de Maio / 2a feira
Enquanto fazia minha higiene matinal, a enfermeira gorda disse ter visto em sua agenda que hoje é o Dia Internacional das Comunicações Sociais. Por que diabo esta mulher resolveu me dizer isso? O fato é que ela me fez pensar, e agora me faz escrever. Nunca fui internacional, sob nenhum ponto de vista, inclusive jamais botei os pés fora do país. Quanto às comunicações sociais, não faço uma idéia precisa do que venham a ser. Dei por mim sorrindo, ao pensar que qualquer conversa durante uma festa pode ser considerada comunicação social. Há muito que eu não sorria espontaneamente. Há anos não sei o que é uma festa. Há quanto tempo me sinto socialmente incomunicável? Tudo isto também dói.
24 de Maio / 3a feira
Doeu quando não me deixaram jogar no time de futebol do colégio. Sobretudo pela explicação dada pelo capitão, na frente dos outros: você é lerdo e medroso. Sempre fui lerdo e medroso desde que me entendo, ou me desentendo, por gente. Minha dúvida é se isto se deve a algo genético ou se foi alguma coisa que me aconteceu, sabe-se lá quando. No berçário? No parto? Na barriga de mamãe? Nem ela e nem papai eram lerdos ou medrosos. É coisa minha.
25 de Maio / 4a feira
Dia de coro. Eu não estarei lá, mas certamente vão ensaiar. Tive um pesadelo horrível esta noite. Eu estava no berço, fascinado por um chocalho multicor, suspenso, oscilante, e ainda não sabia falar. De repente, o rosto de minha mãe baixou sorridente sobre mim, enorme. Eu quis demonstrar minha alegria e com grande esforço consegui pronunciar gu-gu. Era o exato som que eu queria emitir. Imediatamente a mão direita de mamãe varreu o ar junto a meu rosto, pra lá e pra cá, indicador em riste, enquanto ela dizia não, neném, não. Depois, apontou para si mesma e falou: mamã. Eu insisti: gu-gu. Ela insistiu: mamã. Por mais duas vezes a coisa se repetiu, até que eu me rendi e disse mamã, sentindo que algo em mim havia se quebrado para sempre. Acordei suando, apavorado, e toquei a campainha. Veio a enfermeira magra. Eu menti que estava com muita dor. Ela me aplicou morfina e consegui dormir novamente. Posso quase jurar que o pesadelo foi uma lembrança. Eu vivi aquilo. Ou seja, minha memória está se aguçando. Talvez pelo hábito de escrever.
28 de Maio / Sábado
Doeu demais, doutor, quando soube que minha mulher, única pessoa na vida em quem eu confiei totalmente, minha cúmplice, minha amante, meu porto seguro, meu anjo da guarda, havia me traído com um amigo nosso, de uma maneira muito feia que prefiro não comentar aqui. Eu soube com três anos de atraso, numa tarde ensolarada, no meio de um jogo de futebol na televisão. A empregada pegou o envelope na caixa de correio. Havia dentro um bilhete anônimo com letras recortadas de revista, assinado uma amiga, que até hoje desconfio ter sido ela mesma, para se livrar da culpa e ao mesmo tempo se livrar de mim, porque sabia que eu iria embora. Ao ler o bilhete, senti um gosto ruim no cérebro e daquele momento em diante, nada, absolutamente nada, permaneceu no lugar. Eu inclusive. Foi o jeito que encontrei para suportar a dor: mudei o mundo. Mudei as cores, os gostos, os sons, o céu, o mar, a chuva, o vento, mudei a natureza toda. Doeu a traição e, tanto quanto, doeu e assustou saber que tamanha dor podia ser causada, com retardo, por duas pessoas que, na realidade concreta dos fatos, ao me apunhalar - digamos assim para benefício do drama -, nada fizeram diretamente comigo, não me encostaram um dedo. Nem sequer se aproximaram de mim. Que misterioso e arrasador poder é este que uns têm sobre os outros?
02 de Junho / 5a feira
A quem interessar possa, atesto que em certos casos é claramente perceptível a aproximação do fim. É o que está acontecendo comigo. Posso garantir que não viverei o dia de amanhã, três de junho, sexta-feira. Mas hoje ainda estou vivo e tenho algo a dizer, a declarar, a escrever neste caderno quase vazio, dado a mim pelo meu querido doutor Ademar, o qual arrisco classificar de amigo, e a quem, daqui a pouco, entregarei estas poucas páginas escritas. É o seguinte: consegui finalmente a separação completa e perfeita entre dor e sofrimento. Está doendo muito neste momento e, no passado, foram incontáveis as grandes e pequenas dores, do corpo e da alma, cuja lembrança por sua vez também dói. Mas eu nada mais sofro. Da dor, meu caro Ademar, não há vivente que escape. Sofrer, no entanto, agora compreendo, não é obrigatório. Sofre quem assim o deseja. Eu sei: como moribundo sou suspeito para afirmar qualquer coisa. A suspeição é lamentável, porque seria bom que pudessem acreditar. Estou em paz, numa enorme paz que ousarei chamar de felicidade. Uma felicidade de pouca duração, devido às circunstâncias, porém intensa o suficiente para compensar todos os trancos e barrancos com que a ela cheguei.
***
Este pequeno diário escrito ao longo de pouco mais de uma quinzena, me foi entregue por um paciente do Hospital São Francisco, poucas horas antes de sua morte. Digitado por Joaquim Assis, meu amigo, o encaminho à publicação respeitando o desejo do paciente de permanecer incógnito, bem como de ser lido pelo maior número possível de pessoas.
Rio de janeiro. 07 de Junho de 2005
Ademar R. Pertan
Cancerologista
- Texto escrito por Joaquim Assis, cineasta,
- dramaturgo e músico.
1 comment:
..para além da vida e da morte..
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