Friday, July 08, 2005
A morte da imprensa liberal
O cartum mostra como a direita retrata a imprensa liberal: ela usa o escândalo da tortura em Abu Ghraib para atacar Tio Sam pelas costas
Daniel, do Blog do Daniel, sugere que eu escreva sobre a chamada imprensa liberal nos Estados Unidos; lembra que o símbolo dos jornalistas liberais, Dan Rather, fechou com Bush depois de 11 de Setembro (é verdade).
Segundo o jornalista Mark Herstsgaard, citado pelo Daniel, "a maior piada política nos Estados Unidos é que nós temos uma imprensa liberal".
Imprensa liberal é um xingamento inventado no governo Nixon para atacar os jornais e TVs que criticavam a condução da guerra do Vietnam. Na época o ícone do jornalismo era Walter Cronkite, o âncora da rede de TV CBS, que ousou concluir um telejornal dando a opinião dele a favor da retirada das tropas americanas do Vietnam. Segundo a direita, foi exatamente aí que a guerra começou a ser perdida. Uma traição.
Desde então a direita - o partido Republicano, a Coalizão Cristã e grupos de interesse ligados a ambos - passou a usar esse bicho-papão para assustar o americano médio. A imprensa liberal virou o símbolo de tudo que apavora a baixa classe média: drogas, homossexualismo, esquerdismo, adoração pela França, feminismo, multiculturalismo, arte de vanguarda, decadência do patriotismo americano.
Por trás da imprensa liberal estariam as "elites" antiamericanas e globalizantes: bilionários como George Soros e Bill Gates, os astros multimilionários de Hollywood, como Steven Spielberg e Barbara Streisand, os âncoras e magnatas das redes de TV, como Dan Rather e Ted Turner, gente que usa seu poder financeiro para controlar o partido democrata e que teve Bill Clinton como líder.
George W. Bush foi eleito como um "homem do povo", um cowboy autêntico para derrubar essa "cabala de judeus e estrangeiros" que traiu a América profunda. E foi reeleito pelo mesmo motivo, para manter longe do poder os "liberais" como John Kerry e Jane Fonda, mais conhecida como Hanói Jane, a traidora.
O melhor livro político do ano passado foi What's Wrong With Kansas? do jornalista Thomas Frank. Ele mostra que os democratas perderam o poder porque foram derrotados na batalha cultural, deixaram que os republicanos se apoderassem dos valores do americano médio - religião, moralismo, família - para se tornarem o partido do "homem comum" contra o partido das "elites urbanas", os democratas "liberais".
Tiveram tanto sucesso, que o homem comum elegeu e reelegeu Bush, mesmo sabendo que ele tornaria os ricos muitíssimo mais ricos e a classe média muito, mas muito mais pobre. A superestrutura ideológica venceu o interesse econômico desses eleitores. Para eles é Bush quem vai impedir a dissolução dos costumes e desfazer a revolução dos anos 60.
No fundo, é verdade que os jornalistas crucificados como "liberais" não são muito diferentes dos "conservadores", mas por simpatizarem com os democratas viraram os bodes-expiatórios da direita cristã. Estive num subúrbio de Atlanta entrevistando uma família típica, para o Globo Repórter, e o nome de Dan Rather, na época o âncora da CBS que substituiu Cronkite, causava tanto horror quanto Satanás, até pior. Apoiar Bush era só fingimento do tinhoso.
Desde que o escândalo Watergate criou a ficção de que a imprensa seria o Quarto Poder, a direita vem preparando o contraataque, agora consumado. A queda de Dan Rather, apanhado numa armadilha obviamente montada pela direita - documentos falsos "provando" que Bush não prestou o serviço militar - foi uma entre muitas vitórias recentes dos conservadores contra a imprensa liberal. O escândalo anterior no jornal The New York Times, traído por um repórter mentiroso, foi outra. Essa mesma turma está comemorando a prisão da repórter Judy Miller. Serviu, segundo eles, para mostrar que a imprensa liberal não está "acima da lei".
Jornalistas como Mark Hertsgaard, que escreve para um dos poucos órgãos de esquerda, a revista The Nation, que não vende em banca e tem menos de 200 mil assinantes, são minoria neste país, uma honrosa e batalhadora minoria que se refugia na Internet. Mas até na blogosfera a direita ocupou os espaços, assim como no rádio, e foram os blogueiros de direita que derrubaram Dan Rather e quase derrubaram Clinton.
Só que é schadenfreude, rir da desgraça alheia, e rir até da própria desgraça, dizer que a imprensa liberal mereceu sucumbir sob os ataques do governo Bush, ao qual ela já se rendeu. O escândalo da tortura de presos pelos americanos no Afeganistão e no Iraque é um bom exemplo. Foi levantado pela grande imprensa mas já sumiu do noticiário. Acabou o pouquinho de independência que a mídia ainda possuía, o que criou uma situação nova. Como escreveu o jornalista James Pinkerton, "o governo está maior e mais forte do que nunca. A mídia está despedaçada. É uma fórmula perfeita para a estratégia do governo, de dividir para conquistar. O estado pode fechar o punho o quanto quiser, confiante em poder esmagar cada um de nós, um a um a um".
Vão continuar existindo jornalistas como Mark Herstgaard, valorosos paladinos da esquerda. Mas sem acesso à grande imprensa, que atinge as massas, serão apenas vozes clamando no deserto. Ainda vamos chorar a morte da imprensa liberal.
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