Sunday, November 06, 2005

Espere um segundo



ESPERE UM SEGUNDO
Jorge Pontual

Uma decisão que será tomada esta semana por um grupinho de burocratas em Genebra pode acabar com o costume milenar de associar a contagem do tempo à rotação da Terra.

A União Internacional de Telecomunicações, órgão da ONU, se reúne para considerar a proposta dos Estados Unidos de acabar com o “segundo extra” (em inglês, leap second) que vem sendo acrescentado ao tempo contado pelos relógios atômicos desde 1972. Vinte e dois segundos extras já foram incluídos desde então, e mais um vem aí em 31 de dezembro de 2005.

O segundo extra é necessário para ajustar o tempo dos relógios atômicos ao tempo da rotação da Terra. Estabeleceu-se que um segundo é o tempo de uma rotação completa do planeta dividido por 86 400 (um dia tem 86 400 segundos). A partir daí, calculou-se que este segundo, esta duração de tempo, era exatamente equivalente a 9 192 631 770 ciclos da frequência de radiação do átomo do césio. Esta é fixa, e garante a precisão dos relógios atômicos.

relógio atômico


Mas a rotação da Terra não é fixa. A ação do Sol e da Lua sobre os oceanos que cobrem 70% do nosso planeta aquático – impropriamente chamado Terra – funciona como um freio, e a rotação dura um infinitésimo mais, a cada dia. Ao fim de um ano, o tempo contado a partir da rotação da Terra, o tempo astronômico também chamado Tempo Universal, pode chegar a um segundo a mais do que o tempo contado pelos relógios atômicos. Decidiu-se então acrescentar um segundo extra, toda vez que essa diferença chegar a um segundo, como já aconteceu 22 vezes.

Para todos que dependem do TAI, Tempo Atômico Internacional, o segundo extra é um inferno. O sistema que controla o posicionamento por satélite, o GPS, tem que ser ajustado toda vez que se introduz o segundo extra. Isso já levou a erros e danos consideráveis. Daí a pressão do poderoso setor de software, e de toda a área tecnológica, para que o governo americano leve a UIT a acabar com o segundo extra. A solução proposta é parar de introduzir o segundo extra a partir de 2007. Daqui a mais ou menos 360 anos, quando a diferença entre o tempo atômico e o tempo astronômico chegar a uma hora, essa hora extra seria introduzida, de uma só vez.

relógio atômico

A UIT vinha discutindo essa mudança em segredo quando alguém decidiu vazar o debate para a imprensa há poucos meses. Os astrônomos reagiram com indignação, liderados pela Royal Astronomical Society da Grã-Bretanha (a qual vai perder a hegemonia do tempo de Greenwich, que deixaria de ser preciso). Se o segundo extra for eliminado, os astrônomos é que vão ter que ajustar seus equipamentos para que o tempo medido por eles não fique defasado em relação ao resto. O custo disso é incalculável.

O fato é que a decisão está para ser tomada sem consulta aos interessados – todos nós. Será que é o desejo da humanidade desvincular, pela primeira vez na História, a nossa contagem do tempo e a rotação da Terra, que é o que nos conecta ao movimento dos astros e ao Universo?



Do ponto de vista da alta tecnologia, não há dúvida. Dane-se o tempo astronômico. O que conta é a precisão do tempo atômico. Afinal, há décadas a ciência e a tecnologia abandonaram a evidência do bom senso e dos sentidos e mandaram às favas a “realidade cotidiana”. O tempo, para a ciência einsteiniana, é tão relativo quanto tudo o mais.

Mas a passagem do tempo é algo real e fundamental para as nossas vidas. Mal ou bem, somos animais e vivemos sobre as poucas partes secas deste planeta aquático – e mesmo essas placas sólidas flutuam sobre magma líquido, como os terremotos nos lembram de vez em quando – e desde sempre nos guiamos pelo nascer e o pôr do sol, ilusão que se deve à rotação da Terra em torno do seu eixo.



O próprio conceito de Tempo surgiu da observação da regularidade desses fenômenos astronômicos: o dia solar, o mês lunar, os solstícios e equinócios que marcam a sequência das estações do ano. Como escreveu Jorge Luis Borges, o tempo é a substância de que somos feitos. E o universo que observamos com nossos olhos é real e temporal.

O tempo dos nossos antepassados sobrevive nos relógios de ponteiros e faces circulares, de rodas e pêndulos, na imprecisão dos relógios solares que acompanham a sombra do sol. Já o novo tempo tecnológico é digital, atômico, implacável. É, como virou moda dizer, um novo paradigma.

O segundo extra foi inventado como uma forma de ajustar os dois mundos, o astronômico, analógico, ao atômico, digital. Um jeitinho engenhoso de aderir ao novo sem sacrificar o velho. Será que está na hora de deixar que uma pequena elite, por pressão das empresas de alta tecnologia, tome uma decisão que representará o rompimento irreversível com o passado e com o universo real que nos cerca?



Enquanto ponderamos o problema, vale a pena reler o poema de Baudelaire, O Relógio, que traduzi para o português.

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