Saturday, November 26, 2005
Pensando Euboldina
Pensando Euboldina
Anna Maria Ribeiro
Acordei com uma zoeira não habitual. Parecia vir do prédio ao lado. Corri para o escritório e abri a janela. O que eu vinha temendo, há já algum tempo, estava acontecendo. A mangueira e o abacateiro, que vinham se estranhado, estavam passando da intenção à ação. Galhos de ambos, de uma forma grosseira, estavam empenhados numa luta para ver quem conseguia entrar primeiro pela janela do escritório. A mangueira, marota, havia produzido uma manga na ponta do galho mais dianteiro, numa tentativa de me subornar. Isto enfureceu o abacateiro que, mais ágil, passou a golpear a infeliz para fazê-la cair. Fiz que não vi. Como tomar partido? Minha relação com as duas árvores era íntima e antiga. Quando nos conhecemos nenhuma das duas havia se aproximado da janela e eu ainda conseguia ver o Cristo, agora encoberto pela mangueira. A mangueira já era velha, o abacateiro mais jovem e eu uma jovem senhora. Pelo rabo do olho acompanhei a disputa me perguntando o porquê desta minha ligação tão forte com árvores.
Fui interrompida por um telefonema de minha neta informando que precisava urgente do Lego que constrói um sítio. E o mistério das árvores se revelou: os fícus do sítio! Eram seis,numa fileira que ia da janela da cozinha até as cocheiras. Já adulta os vi ser abatidos. Estavam levantando, com suas raízes, a casa, o paiol, o quarto de arreios, as cocheiras. Quem sabe por vingança de minha ausência. Quase chorei. Aquelas árvores haviam sido tudo em minha infância. Nelas eu subia para escapar de qualquer coisa desagradável e ficava escondida entre os galhos enquanto adultos ensandecidos gritavam meu nome. Impossível me localizar porque elas eram da maior lealdade: sempre proviam um emaranhado de galhos onde eu me colava abraçada sem que pudessem me ver. Mãe, tias e avó ficavam gritando em vão, em tons ternos ou ameaçadores dependendo do locutor. Mas o que mais me encantava eram as raízes. Saindo da terra rugosas e fortes, formavam desenhos incríveis. Ali construí meu mundo. Os espaços de terra por elas delimitados eram para mim cidades, fazendas, ruas, estradas, casas e que mais sei eu. Cada árvore era um país. A primeira, perto da cozinha, era o Brasil, ou pelo menos era minha terra e os habitantes falavam português. A segunda era a França onde só era permitido o francês. As outras quatro eram países encantados já que aos cinco anos meu mundo não ia além do Brasil e da França. Numa delas – a terceira - as raízes formavam uma mini-caverna onde eu guardava tesouros de valor incalculável. Eram pequenos objetos surrupiados com maestria nas barbas dos adultos. O mais extraordinário e poderoso era uma caixa de Euboldina. Achei o nome lindo quando o escutei, receitado por um dos tios médicos que atendiam de graça, nos meses de férias, num ambulatório improvisado perto da porteira. Vai daí que irresistivelmente seduzida roubei uma caixa de amostra grátis. Pode nome mais bonito? Decretei que tinha um efeito mágico: o de me tornar invisível. Era a pura expressão da verdade. Ninguém conseguia me achar quando eu ingeria uma cápsula. Porque eu o fazia! Euboldina, fui saber anos mais tarde, era remédio para rins. Anjos da guarda devem existir: as cápsulas ingeridas não causaram qualquer efeito negativo. Só mesmo a minha invisibilidade. Dei também para meu cavalo – o primeiro que tive e que se chamava Coringa. E ele passou a desaparecer como eu. Euboldina tinha outros atributos poderosos: se concentrada em seu nome, conseguia fazer com que desistissem de me fazer comer espinafre e exorcizava diversos fantasmas que habitavam a casa do sítio à noite. Era só pensar Euboldina e eles fugiam com o rabo entre as pernas. Nunca mais tive medo. Protegia também meu irmão, que só tinha um ano e que eu adorava. Se ele chorava, o poder de Euboldina fazia com que voltasse a sorrir. Não me lembro se também ministrei este medicamento a ele. É bem provável. Mas como ocorreu comigo nenhum dano foi verificado. Está ele por aqui firme e forte aos mais de 70!
O som raivoso dos galhos em disputa me fez voltar ao presente. Estava ficando feia a coisa. Iam acabar perdendo um galho como já estavam perdendo folhas. Impossível continuar a fingir que não estava percebendo. Vai daí que pensei: quem sabe? Fui até a janela e encarei as duas árvores com firmeza. Severa, mesmo. Por um instante aquietaram-se esperando, quem sabe, que eu tomasse algum partido. Olharam-me desconfiadas. Eu sempre tão afável parecia zangada. E estava mesmo. Aquilo era jeito?! Foi aí que eu murmurei, olhos nos galhos: Euboldina. Surpresas, elas me encararam. Eu repeti firme: Euboldina! Encantada, vi que se afastavam uma da outra, com delicadeza. A mangueira avançou a manga em minha direção e com um outro galho apontou para um projeto de abacate exibido pelo outra. Sorriam ambas. Euboldina restabelecera a paz e a ordem com a mesma eficiência de então. Não sei se ainda existe o remédio. Mas a velha magia de seu nome, que não constava da bula, certamente ainda existe. Preciso pensar Euboldina com mais freqüência, nos tempos que correm.
Subscribe to:
Post Comments (Atom)
No comments:
Post a Comment