Tuesday, November 01, 2005
O Watergate de George W.
Eu era quase um foca quando vim aos EUA, com Heron Domingues, cobrir para a Globo a eleição presidencial de 1972. Em junho, os trapalhões que arrombaram o escritório do partido democrata no prédio Watergate tinham sido presos. Era uma história difícil de cobrir para a TV, não havia imagens. Assim mesmo consegui botar no ar algumas matérias sobre o assunto. O caso Watergate estava no começo, a Casa Branca ainda podia negar que tivesse qualquer coisa a ver com os arrombadores. Nixon foi reeleito com uma avalanche de votos, esmagando o candidato democrata George McGovern, até hoje visto como tudo o que há de errado com o partido - estigmatizado como um político "de esquerda" incapaz de atrair os eleitores centristas. Uma síndrome que até hoje imobiliza os democratas, incapazes de ousar, por medo do estigma de McGovern.
Em novembro de 1972, ainda estava no início a investigação dos repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein, do jornal Washington Post, os quais seguiam a pista do Garganta Profunda (hoje se sabe que ele era o segundo homem do FBI, Mark Felt) que dizia: "Follow the money!". Pista que levou ao Salão Oval da Casa Branca. Nixon, ameaçado de impeachment, só renunciaria quase dois anos depois, em agosto de 1974.
Ainda é cedo para prever se o escândalo que levou ao indiciamento do chefe de gabinete do vice Dick Cheney, Scooter Libby, pode se tornar o Watergate de George W. Bush. Mas há paralelos. Nos dois casos, o poder executivo mentiu para encobrir ações ilegais ou impróprias. No caso de Nixon, o uso de "dirty tricks", golpes sujos, contra a oposição. No caso de Bush, algo muito mais grave: o uso deliberado de falsidades para levar o país à guerra.
No caso Watergate, o jogo só virou contra Nixon em abril de 1973, quando o assessor legal de Nixon, John Dean, passou a colaborar com a investigação do Senado, e assim não ir para a cadeia (acabou sendo condenado mas teve a pena reduzida). O mesmo John Dean agora publica um livro afirmando que os segredos do governo Bush são piores do que Watergate. A partir da colaboração de Dean, os dominós foram caindo. O vice-presidente Spiro Agnew renunciou em outubro. Em maio de 1974, foi aberto o processo de impeachment do presidente por obstrução da justiça. Nixon renunciou em 8 de agosto.
No caso atual, o promotor especial Patrick Fitzgerald foi encarregado de investigar, a pedido da CIA, quem revelou o nome da agente Valerie Wilson à imprensa, o que é crime. Valerie é casada com o diplomata Joe Wilson, que em maio de 2003 denunciou uma das mentiras da Casa Branca, a acusação de que Saddam Hussein estava comprando urânio na África, mentira que estava no discurso do presidente Bush ao Congresso em janeiro de 2003, e que foi usada para justificar a invasão do Iraque em março daquele ano. O nome de Valerie foi dado aos jornalistas por algum alto funcionário da Casa Branca como retaliação contra Wilson.
O que o promotor já descobriu é que Scooter Libby, o assessor do vice presidente, mentiu para proteger o chefe e encobrir o autor do crime. O promotor ainda não sabe quem revelou o nome de Valerie, mas continua investigando. As suspeitas apontam para o principal assessor de Bush, o chefe da Casa Civil, Karl Rove. É possível que, como aconteceu com John Dean no caso Watergate, Scooter Libby decida falar para não ir parar atrás das grades. Os crimes de obstrução de justiça e perjúrio, pelos quais ele será julgado em breve, podem levar a 30 anos de prisão.
Mas pode ser que Libby prefira não falar. E está sendo muito difícil para o promotor reunir provas sólidas contra Karl Rove. Se tudo acabar em pizza, Bush sairá chamuscado mas chegará ao fim do mandato.
O economista Paul Krugman, colunista do New York Times, acha que Bush vai sair dessa. Afinal, os trapalhões de Nixon eram um bando de amadores comparados com a turma de Bush, que não brinca em serviço. Mas Krugman pergunta se não seria o caso de a imprensa fazer um mea culpa. Afinal, Krugman foi nos últimos cinco anos uma voz solitária clamando no deserto, denunciando desde o início as mentiras descaradas do governo Bush. Por que a mídia - inclusive o New York Times - permitiu a Bush construir uma fachada fraudulenta de líder patriótico, quando no fundo os jornalistas poderiam ver claramente o que a Casa Branca estava armando nos bastidores?
No caso Watergate, a imprensa foi fundamental para derrubar Nixon - e por isso ganhou o apelido de "o Quarto Poder". Mas no caso do governo Bush, a mídia tem se mostrado complacente e cúmplice, ou no mínimo preguiçosa. Joe Wilson veio a público para mostrar que Bush mentira à nação. Mas por que nenhum jornalista fez o mesmo que Wilson, que foi à África - a pedido da CIA - para checar a acusação falsa a Saddam Hussein? Os documentos sobre a compra de urânio pelo Iraque no Niger eram uma falsificação tosca. Mas isso só apareceu na mídia depois da denúncia de Wilson. Desde 11 de Setembro, a grande imprensa pintou Bush como um grande líder, o que permitiu que ele fosse reeleito. Mas nunca é tarde para chorar sobre o leite derramado.
O próprio New York Times acaba de fazer seu mea culpa. O editor Bill Keller reconheceu ter errado ao deixar passar mais de um ano sem investigar as matérias em que a repórter Judy Miller deu o "furo" de que as armas de destruição em massa de Saddam tinham sido achadas. Era "barriga", Judy se baseou numa fonte mentirosa, o vigarista iraquiano Ahmed Chalabi. Pior, Keller deixou que Judy posasse de mártir da liberdade de imprensa, quando ela foi para a cadeia, por 85 dias, para não depor na investigação do promotor Fitzgerald. Hoje se sabe que Judy estava protegendo as mentiras de Libby. Agora, ela está negociando seu desligamento do jornal.
Por que será que Scooter Libby mentiu tão descaradamente ao promotor (por cinco vezes!), afirmando que soube do nome de Valerie através dos jornalistas, quando bastou a Fitzgerald ouvir os repóteres e assim desmontar o álibi do assessor de Cheney? É claro que Libby apostou que todos os repórteres fariam o que Judy fez: ir para a cadeia, mas não revelar a fonte. Só que, em vez disso, seis repórteres depuseram, entregando a farsa de Libby. O gesto de Judy ficou sem sentido, e ela também acabou falando ao promotor.
Eu confesso ter aplaudido a decisão de Judy Miller de ir para cadeia em nome do direito a preservar sua fonte. É um princípio importante para a liberdade de imprensa. Mas quando o silêncio do repórter na verdade protege um criminoso, como foi o caso, isso não se justifica.
Onde vai parar esse escândalo? O colunista Nicholas Kristof pediu que o vice-presidente Dick Cheney renuncie. Afinal, o promotor descobriu que quem deu o nome da agente da CIA a Libby foi o próprio Cheney. O vice não falou com os jornalistas, portanto não cometeu nenhum crime. Mas obviamente ele está por trás do complô para castigar o marido de Valerie, Joe Wilson. O próprio Cheney foi à TV várias vezes para dizer que Saddam estava prestes a explodir uma bomba atômica. Ou seja, mentiu descaradamente. Por enquanto, Cheney está tranquilo. Mas se Libby falar, ou outras provas surgirem, a situação do vice pode ficar insustentável.
Nixon, durante o escândalo Watergate, se livrou dos assessores mais comprometidos, sacrificados para tentar salvar sua presidência. Não deu certo, mas pelo menos Nixon não se comportou como se estivesse vivendo num mundo de fantasia. Ele sabia do perigo que corria. Já Bush parece estar vivendo em outro planeta, como se nada o afetasse. Até quando ele vai continuar dentro dessa "bolha", cercado por bajuladores que lhe dizem o quanto ele é brilhante e poderoso?
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