Friday, November 11, 2005

Portinari

É HORA DE RESSUSCITAR DOM QUIXOTE
Anna Maria Ribeiro

Sinto que é hora de ressuscitar Dom Quixote. Mas não o Sancho! Este está vivo. Vivíssimo. Clonado em sua racionalidade em milhares de cidadãos, sobretudo naqueles que deveriam nos orientar para um mundo melhor. Dirão-me que é necessário ser racional.
Mas, cá do meu lado, o que ando sentindo e querendo – querendo muito – é sonhar o sonho impossível. É preciso, necessário, imprescindível que meio a tanta feiúra sejamos capazes de, loucos, identificar o inimigo nos moinhos de vento. Porque o inimigo real não está valendo uma luta racional, dentro dos conformes. Talvez estes – os moinhos – tão belos em sua postura, tão poderosos em sua capacidade de domar o vento e torná-lo seu escravo, sejam exatamente aqueles que nos fazem tanto mal e que, camuflados, tentam impedir que sejamos capazes de identificá-los.
Sejamos poetas em nossa revolta. Heróicos em nossa postura diante do impossível. Deixemos que em vão os Sanchos tentem nos explicar o que vai por aí. Vamos ver o que nossa loucura enxerga. Num corcel pífio, porque outro não temos, e que seremos capazes de ver como lindo, vamos cavalgar por este país afora pregando a luta mágica, porque a real já não surte efeito. E Rocinante nos levará às pequenas cidades, às pequenas vilas e nós soltaremos o brado: Vocês foram enganados. Sancho dirá que é assim mesmo. Mas não vamos escutá-lo. Ou melhor, vamos dar a ele a explicação mágica na qual ele não vai acreditar, mas o que importa? Sancho é assim
mesmo. Tanto os de esquerda quanto os de direita. Proliferam, dão explicações, razões, motivos. Falam demais. Explicam, esquadrinham, investigam e chegam... ao nada. A fome, a injustiça, o desânimo, a dor, explicados e esquadrinhados, objeto de projetos, leis, intenções, discussões, propostas, tudo muito racional e até posto no papel timbrado e com fé pública, permanecem nas esquinas das cidades e nos rincões longínquos onde esquina não há.



Vamos nos perder de amores por Dulcinéia que “teve assomos de dama, de Dom Quixote foi chama e glória de sua aldeia”. Importa lá se estes assomos de dama não são vistos, reconhecidos e louvados naquelas que habitam estes rincões tão longínquos? O que vamos sentir será real e nos trará momentos de ardor. Não de raiva, não de desânimo, não de impotência. Por que estes já nos cansam sentir. Não que Sancho seja mau, ou mesmo desonesto. Não! É apenas conformado com o que existe. E isto é terrível. Me vem, de longe, a voz doce de Seu Teófilo, sábio caipira de muita saudosa memória: “Devêra de ser assim mesmo...” Não! Não devêra. Nada deve ser assim mesmo. Dom Quixote não deixaria que assim fosse. Iria lutar. Esbravejar. Gritar e avançar valoroso, incitando Rocinante a que o levasse à batalha. Debalde? Até pode ser... Mas como tentar valeria a pena! Justificaria uma vida como ocorreu com ele – Dom Quixote. Valeu para ele que até hoje vive em sua história que sabemos, lemos, compreendemos, admiramos, nos emocionamos, mas somos incapazes de repetir.
Vamos nos tornar surdos aos apelos de Sancho que nos chama à razão.
Razão que impede que dentro de nós a indignação que existe, se mostre, tome corpo e torne-se ação perdendo o início da palavra que a impede, sufoca e faz mal. Porque faz. Muito mal. Indignação sem ação “é maus” como diriam meus mais jovens conhecidos. E é, sobretudo, a estes jovens que falo. Vocês, na coragem e na falta de prudência que é própria, são capazes de mudar o sentido da palavra “quixotada” e torná-la significativa de uma ação de dar gosto. Esta ação pode começar por um simples plástico colado a um carro, a uma moto, a uma bicicleta. Estes carros, estas motos, estas bikes, fazendo o papel de Rocinante, percorrerão esta cidade, e outras e mais outras e quem sabe até aqueles rincões longínquos onde a esperança há muito deixou de existir porque o “devêra de ser assim mesmo” instalou-se pra ficar. Nestes rincões seria melhor que ao invés de plástico o grito, o alerta, o chamamento tomasse corpo nos pára-choques dos caminhões que por lá passam carregados de comidas, frutas e até flores, informando a todos que deles só aproveitam a poeira, que em algum lugar neste País chegam bens que garantem a vida e a beleza do viver. E os olhos dos que não têm mais esperança desviariam o olhar da lona que cobre a carga, símbolo do impossível alcançar que diariamente os massacra, para a frase que resgata esta esperança:
QUE SE VAYAM TODOS!

Jacques Brel como Dom Quixote

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