Wednesday, November 02, 2005

Vendendo saracura



Anna Maria Ribeiro

Ando tendo saudades do futuro. Este – o futuro – até então só entrava em minhas cogitações no que toca a rápida perda do poder aquisitivo dos proventos da aposentadoria. Mas este pensamento sempre descartei pela inevitabilidade da perda total, inegável pelas projeções matemáticas, caso eu tenha a ousadia de viver mais do que devo. Mas de uns tempos para cá se iniciou insidioso o pensar o futuro a partir da conjuntura atual. Como sempre acontece em previsões futuras, é difícil ser honesta. O desejo de que boas coisas aconteçam invade a técnica e, sem querer, a gente dá uma pequena ajuda, aqui e ali, tornando a visualização da situação futura mais agradável, ou pelo menos mais palatável. Mas as coisas andam confusas demais e para partir do que está acontecendo – condição indispensável para qualquer projeção - é necessário saber-se o que está acontecendo. E isto está se revelando impossível: situações invertem-se em dias e mesmo horas. As coisas são ditas, desditas e não ditas numa rapidez e desfaçatez impressionantes. E durma-se com um barulho destes! Vai daí que passo a construir cenários sem me valer da técnica mais me escudando no desejo imenso de que as coisas cheguem a bom termo. Não para mim, é claro, o INSS não vai permitir futuro que se preze, qualquer que seja o cenário resultante. Mas para meus filhos e netas. E aí bate a saudade! Saudade de um futuro a que me levava a análise da conjuntura que se apresentava no momento e que me conduzia a paragens possíveis de se viver. Umas mais atrativas, outras menos, mas todas “vivíveis”. Lembro-me que logo após o impeachment do Collor um amigo e eu fizemos uma séria análise da conjuntura que se apresentava na época. Nos dedicamos pra valer. Examinamos os cenários, o comportamento dos atores, os fatos reais, enfim tudo que nos pudesse levar a projeções futuras. E nelas – todas - encontramos a esperança de dias melhores. E deu no que deu! Furiosamente desabei, semana passada, todas as prateleiras de cima dos armários onde guardo minha vida pregressa. Precisava conferir onde e porque erramos. Quais as premissas falsas que nos haviam levado a este horror. Nesta busca me caiu nas mãos uma foto antiga e desbotada da casa do sítio de minha avó, em Miguel Pereira. Estávamos todos na varanda cercando a nobreza de minha avó. E a luz se fez! Desisti da busca do futuro e voltei-me para a certeza do passado. Tinha eu uns 10 anos. A família reunida, tarde da noite, conversava na enorme sala. Nós, as crianças, estávamos espalhadas aleatoriamente nos colos de mães, pais, mães, tios e tias, quase dormindo embaladas por assuntos que às vezes entendíamos, às vezes não, mas que nos davam uma enorme sensação de conforto e proteção. Chovia muito. Era daquelas chuvas de verão que de tão fortes impede a visão do lá fora. Ainda não havia luz por lá. E a do lampião enorme que pendia do teto convidava a fechar os olhos e apenas ouvir. Eis que de repente, os cães começaram a latir furiosamente. Pais e tios vestem seus ponchos e munidos de lanternas saem a cata do que quer que fosse. Não havia grandes ameaças, naquele tempo. Mas o palmito e as frutas, vez por outra, sofriam alguns ataques. Excitados, abrimos os olhos e corremos para as janelas, buscando uma brecha entre mães e tias procurando ver, através da chuva, a luz bruxuleante das lanternas. De repente todas convergiram para um só ponto e para o alto. Ouvimos as vozes irritadas dos pais e tios ordenando: desce daí! Alguém havia se encarrapitado em uma árvore, acuado pelos cães. As luzes das lanternas foram descendo e pouco depois se dirigiram em grupo para a casa. Corremos para a varanda e reconhecemos Seu Dezinho, conhecido surrupiador de palmitos, escoltado pelos varões da família para ser submetido ao julgamento de minha avó, como era devido. No silêncio que sempre se estabelecia em situações graves como esta, minha avó adiantou-se para cobrar a justificativa esperada. E, entre divertidos e espantados todos ouvimos o extraordinário motivo da intrusão:
- ‘Noite, Dona Maria Clara!
- Boa noite, seu Dezinho. E então?! O que faz aqui por estas horas?
- Dona Maria Clara! Eu tava vindo pela estrada e pensei assim: e se eu vendesse uma saracura para Dona Maria Clara?
O dito perdura até hoje na família e é usado todas as vezes que alguém para justificar-se do injustificável parte para o absurdo. Entendo agora porque não consigo formular qualquer projeção lógica a partir do que ocorre hoje em dia. Todos os atores que podem me fornecer informações que permitam elaborar um raciocínio lógico estão querendo me vender saracura!

No comments: