Sunday, January 08, 2006
REVEILLON COM OS MEUS
Anna Maria Ribeiro
Olho incrédula para o convite: Reveillon da Terceira Idade! Eu, heim?! Até pra convite sou assim, rotulada! Irritada, rasgo o cartão. Mas ficam martelando em minha cabeça, o valor do ingresso e a programação anunciada: cem reais para ouvir orquestra do “nosso tempo”. Engraçado! Não falaram em dançar... Vai ver acham que seria demasiado esforço ou mesmo uma impossibilidade. E penso, maldosa: no caso o ouvir também pode ser uma impossibilidade! Pior é o alerta: você estará entre os seus! Que meus, cara pálida?! Coisa mais maluca. Sabem eles lá quem são os meus? Pra falar a verdade nem mesmo eu conseguiria relacionar, naquele momento, todos os meus de minha já tão longa vida. Vida passada entre meus antigos que sumiram ou partiram, meus que sempre o foram e permanecem sendo, meus novos que chegam sem aviso numa surpresa gostosa. E, certamente, novos ainda meus surgirão. Jamais imaginei classificá-los por idade. Este nunca foi um dado determinante de minhas inclusões na categoria meus. Outro dia mesmo um novo meu surgiu trazendo solução para um grande problema: o filho de seu Álvaro. Seu Álvaro era um meu há mais de 40 anos. Um encanto de pessoa que manteve viva e ativa a jurássica máquina de lavar que teimava em conservar. Mas seu Álvaro se foi. Doeu. Seu Álvaro fez falta. Era um meu de respeito. Mas eis que o filho de seu Álvaro – Alvinho – que já conhecia pelas histórias do pai na hora do cafezinho, veio em meu socorro. O mesmo jeito, o mesmo sorriso, a mesma tranqüilidade de resolver qualquer enguiço. Tornou-se um meu. Não vou passar o reveillon com ele, mas se isto acontecesse teria o maior sentido. A Jô, faxineira, também não vai passar o reveillon comigo. Não tenho a menor idéia de onde estará ela nesta hora festejada. Provavelmente com o namorado, cego de um olho, um negão pra lá de simpático e a filha, mulata linda de morrer. Jô é um dos melhores meus que tenho. Com ela nunca passei o reveillon, mas passo a vida, desde sei lá quando, no diário do macio das roupas lavadas e da casa mais que limpa, onde ela deixa sua presença perfumada quando se vai. E o Zé porteiro? Com este até que passei um reveillon. Havia decidido que não decidiria por qualquer dos lugares possíveis em companhia de meus viventes. Queria mais era ficar em casa sozinha, mas não solitária, com meus livros, com meus discos e com os meus que se foram, sempre presentes e atuais e com os quais mantenho, esquizofrênica, longas e deliciosas conversas. Quase à meia noite lembrei que o Zé estava de serviço na portaria. Atraquei-me a uma garrafa de champagne e a duas taças e precipitei-me elevador abaixo. Ficamos conversando tomando champagne e ouvindo o barulho dos fogos. Ele já era um meu, desde que tinha vindo morar ali e vigiava meu filho mais moço, um pequeno demônio. Nesta noite Zé ficou sendo mais meu ainda de tanto que conversamos sobre os respectivos seus. Um pensamento ataca: tenho meus da minha idade? Sorrio na lembrança das “primas”. A mais moça nos recém sessenta e a mais velha regulando comigo. São sete ao todo. Vez por outra se reúnem para um chá. O último foi até de madrugada. Em cada um destes chás revelações estarrecedoras se fazem. Segredos da mocidade e da infância que foram assim classificados porque na época sua revelação teria efeitos devastadores nos mais velhos da família. “Você também namorou Roberto?!!!” A descoberta de que o belo primo conquistou de forma seqüencial três de nós, sem que ninguém jamais houvesse desconfiado, provoca gargalhadas. Positivamente as primas são meus. Mas a maioria, a grande maioria dos meus é jovem, muito mais jovens do que eu. O mais moço é Ricardinho que está com uns cinco anos e que continua a tentar atropelar-me no pilotis, agora com uma bicicleta ao invés de velocípede. Ricardinho provavelmente estará dormindo na hora da virada e não seria razoável convidá-lo para um reveillon. Ele é um meu matinal. Lá isto é. E os meus de carteirinha? Amigos daqueles que aceitam a gente pelo conjunto da obra seja esta obra boa ou não. São poucos, mas são meus pra valer, para o que der e vier. E tem os meus cadeira cativa, atávicos. Os filhos, o irmão, a cunhada, os sobrinhos, as netas, seus namorados, o genro e a nora. Esta última é recente. Um meu surgido na surpresa que me deixou sem fala ao anúncio do filho (aquele que era um demônio!): “vou me casar na semana que vem!” E não é que a menina tornou-se um meu dos melhores? Nunca os reuni a todos num reveillon. E precisa? Sempre que estão juntos, a visão do que foram e do que – imagino – serão, se faz presente. É só pousar o olhar em cada um deles e os vejo com a nitidez e a beleza de um filme de época, desde que surgiram e se instalaram como meus. O sonho e o desejo fabricam a visão do pra frente lá deles, num ano novo que se anuncia todos os dias. Dou-me conta que ainda não decidi sobre o reveillon deste ano. Mas uma coisa é certa, esteja onde estiver, estarão nele presentes, na realidade ou na lembrança, todos os meus de minha vida. Como sempre.
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