Monday, October 31, 2005
SEM MÚSICA
Infelizmente fui obrigado a tirar do blog toda a música que estava arquivada. Descobri que o cachefly é infinitamente mais caro do que eu estava calculando, inviável. Mantive só as músicas destes últimos posts, portanto aproveitem porque elas também vão dançar, não vou mais arquivar música.
Sunday, October 30, 2005
Genial o artigo da Maureen Dowd na revista do New York Times deste domingo. A coluna dela é sempre a melhor coisa pra ler no jornal. Mas este artigo é imperdível porque em vez de falar de política, o assunto das colunas, ela escreve sobre relações mulher-homem. Por que as mulheres bem sucedidas assustam os homens?
Leia o artigo aqui.
O Grupo Corpo está fazendo o maior sucesso aqui, como sempre. A primeira parte do espetáculo é Lecuona, com casais dançando ao som de composições do mestre cubano.
Ernesto Lecuona (1895-1963) é o maior compositor de Cuba, como George Gershwin é dos Estados Unidos e Villa-Lobos teria sido do Brasil se, como eles, tivesse composto música popular.
Lecuona veio para New York com 21 anos e aqui fez carreira. Compôs trilhas sonoras para filmes de Hollywood, mais de 400 canções em espanhol em inglês, centenas de peças para piano e orquestra. Nos anos 20, fez sucesso à frente do grupo Lecuona Cuban Boys.
Lecuona morreu em Tenerife, ilha espanhola vulcânica no Atlântico, e foi enterrado aqui perto, em Hawthorne.
Lecuona Cuban Boys, Amapola , Ojos negros
Placido Domingo, Andalucia, Noche Azul,
Sempre en mi corazón, Ernesto Lecuona, piano
Adiós a Cuba, Ernesto Lecuona, piano
Saturday, October 29, 2005
Já que estamos falando de chanson française, Rosário me pergunta se eu conheço Arielle Dombasle. Who? Graças a São Google e Santa Limewire, em 10 minutos já sei tudo sobre a moça e tenho fotos e música para botar aqui no blog. Milagres da modernidade. Toda ignorância tem jeito, pra quem sabe que é ignorante e tem sede e fome de aprender mais.
Não é que Arielle Dombasle não só existe como é linda, talentosa e inteligente?! E famosérrima na França...
Tem 47 anos com corpinho de 20, começou a filmar em 1978 com Eric Rohmer, fez um monte de filmes com esse mestre do cinema francês, e acaba de filmar a trilogia Le Genre Humain de Claude Lelouch.
Faz musicais na Opéra Comique em Paris. É ícone dos gays franceses. Cantora lírica, soprano dramático, gravou um disco de árias de ópera em ritmo techno.
O último CD, Amor, amor, é de canções populares em espanhol, incluindo um duo com Julio Iglesias. O pai dela era diplomata. Arielle nasceu nos Estados Unidos, perto de New York, e cresceu no México onde o pai era Embaixador da França.
E se você ainda não está querendo que ela morra de febre aftosa, lá vai: é casada com o filósofo Bernard-Henri Lévy. Como diz minha amiga: nojenta!
E tem mais: Arielle também é roteirista e diretora de cinema, já dirigiu dois filmes. Pode?
Com Arielle Dombasle:
Cuando calienta el sol
Amor, amor
Besame mucho
Sentilo battere
Sebben crudele
Libertá
Estou fazendo desde ontem um boeuf bourguignon - boi borguinhão - para o jantar deste sábado. É um prato francês caseiro e barato, não é coisa de restaurante chic. Coisa da vovó. Aprendi com a Julia Child, num dos livros dela.
Julia Child era muito pândega. Introduziu a cozinha francesa nos EUA nos anos 50, com um programa diário na TV. Fez o programa até morrer ano passado aos 91 anos. Era grande, altíssima e meio curvada - no final MUITO curvada, de dar aflição - sempre com o cabelo arrumado e falando depressa com uma voz aguda, jeito de aristocrata maluquinha.
Uma vez vi Julia Child cozinhando na TV ao lado de Jacques Pépin, que começou como assistente dela e acabou também ficando célebre. Pépin ofereceu a Julia algo que ele fez, ela provou, riu e disse com nonchalance: "É, não está dos piores". Julia Child era sempre hilariante e cheia de energia, dava vontade de cozinhar com ela.
Um dos maiores fenômenos na blogosfera se deve a Julia Child. Julie Powell, uma jovem secretária daqui de New York, desempregada, resolveu fazer todas as receitas do livro clássico de Julia Child, Mastering the Art of French Cooking. E fez, contando tudo dia-a-dia no blog dela, The Julie/Julia Project. Foi um tal sucesso que o blog virou livro, recém-lançado. Já é um best seller. Que idéia genial. Da primeira vez que tentou o boeuf bourguignon, Julie bebeu (erro tremendo, beber enquanto se cozinha), dormiu, e a carne queimou. Teve que começar de novo no dia seguinte.
Julia Child é terrível porque o lema dela parece ser: pra que simplificar o que você pode complicar? Durante os anos em que ela viveu na França, quando jovem, aprendeu que o segredo da cozinha francesa é trabalho, muito trabalho, o que a minha avó franco-espanhola, a melhor cozinheira que já conheci, chamava de "huile de coude", óleo de cotovelo. Minha avó não tinha empregada e passava o dia na cozinha preparando maravilhas.
Traindo minha avó e Julia Child ao mesmo tempo, reduzi um pouco o trabalho deste boeuf bourguignon. O certo era ter começado fazendo o caldo de carne, o que leva horas. Primeiro leva-se ao forno brando uma travessa com ossos e um pouco de água. Quando ao fim de uma ou duas horas os restos de carne se soltam dos ossos e o tutano derrete, os ossos são raspados e jogados fora e o resultado, crocante e melado, é levado ao fogo com água, vinho branco, ervas, cebola, alho, por mais uma ou duas horas, até reduzir e ficar um caldo grosso, escuro e gelatinoso. É uma delícia.
Para minha sorte, uma loja aqui perto vende esse caldo pronto, perfeito, comme il faut , como tem que ser. Então passei a pular esta primeira etapa, economizando algumas horas.
Comecei na tarde de sexta, fritando meio quilo de toucinho cortado em cubinhos, numa frigideira grande (32 cm) e funda, de fundo grosso e chato. Primeiro fogo bem alto, depois baixo, tampado, até a gordura derreter - mas sem deixar queimar. Separei os torresmos e usei a gordura para preparar a carne.
Usei dois quilos de carne de segunda. Aqui vendem como beef stew, carne para cozido, acho que no Brasil seria músculo, patinho ou chã-de-dentro. Custa um quarto do preço do filet mignon. Passei algumas colheres de mostarda tipo Dijon na carne cortada em cubos grandes (5 a 7cm), até os cubos ficarem bem lambuzados de amarelo.
Na gordura bem quente, fui fritando a carne aos poucos (foram quatro vezes, os cubos têm que ficar bem soltos na frigideira para fritar bem), até ficar levemente tostada. Isso "sela" a superfície da carne, preserva os sucos dentro dela.
Julia Child manda deixar a carne, depois de braisée (guisada, refogada), descansar numa panela ou tigela, enquanto se prepara os legumes, mas desta vez fiz diferente porque acho que a carne corre o risco de secar. Então fui botando os cubos marrons no caldo de carne fervendo (usei um litro de caldo e um de água).
Preparei então os legumes na gordura que sobrou na frigideira (se tiver muita, é preciso escorrer quase toda - o fundo estava grudando, joguei um pouco de vinho para soltar). Primeiro, duas cebolas bem grandes picadas fininho. Deixei no fogo alto, mexendo de vez em quando, até ficar transparente - demora. Depois dois punhados de cenoura picadinha e dois de aipo picadinho. Vão servir para tirar o ácido do tomate e do vinho. Poderia ter usado outro legume doce e gostoso, como o funcho.
Por fim, quando a cenoura e o aipo amoleceram, acrescentei à frigideira uma lata de tomate italiano San Marzano, que já vem picado, com o suco. No fogo baixo, tampei a frigideira e deixei refogar bastante.
Virei esse molho em cima dos cubos de carne, já no panelão onde eles vão cozinhar - panela pesada de ferro esmaltado, que os franceses chamam de cocotte e os americanos de Dutch oven. Depois, uma garrafa inteira de vinho tinto, um shiraz do Francis Ford Coppola. Serve qualquer bom shiraz, australiano, chileno, é ótimo para cozinhar carne.
Em seguida, os torresmos e os temperos: sal, pimenta do reino, e bouquet garni - um molho de salsa, cebolinha e outras ervas. Usei tomilho e ervas da Provence.
Esse panelão foi para o fogo baixíssimo, destampado, por horas. Deixei umas cinco ou seis horas, mexendo de vez em quando pra não grudar o fundo. O caldo foi reduzindo aos poucos, engrossando, e a carne foi ficando macia.
No fim tirei o bouquet garni e acrescentei a cebolinha e o champignon. Preparei a cebolinha, daquela branca bem pequena, naquela mesma frigideira, já limpa, com um pouco de água. Ficou no fogo baixo, tampada, um tempão, até quase desmanchar a cebolinha. Claro que antes dá um trabalho danado descascar cada uma - usei três dúzias - e cortar um x na cabeça de cada uma para não se desfazer.
O champignon, daquele branco grande, depois de bem lavado e escovado e enxaguado no suco de limão, é cortado bem fininho.
Acrescentei a cebolinha, já cozida, e o champignon cru, fora do fogo. O calor do molho cozinha o champignon. Mexi tudo muito bem, tampei a cocotte e quando os amigos chegarem é só esquentar e passar a carne para uma travessa bonita. A Julia Child manda passar o molho na peneira e engrossar com manteiga e farinha de trigo, mas acho desnecessário. Pra que complicar?
Para acompanhar, batatas gratinadas. Descasquei as batatas e cortei em rodelas bem finas. Cozinhei as batatas - dois quilos - em dois litros de leite. Acrescentei ao leite bastante noz moscada ralada, sal, bouquet garni. Baixei o fogo quando o leite ferveu e deixei cozinhar até a batata ficar cozida, mas não mole.
Escorrendo o leite, passei metade das rodelas de batata para uma travessa grande e funda que vai ao forno. Antes, esfreguei alho até sumir, por dentro da travessa, e untei com manteiga.
Cobri as batatas com 200g de creme de leite fresco e 250g de parmesão ralado.
Por cima, despejei o resto da batata escorrida. Por cima de tudo, mais creme de leite com parmesão.
Levei a travessa ao forno médio, tampada (ela tem uma tampa de vidro) por 40 minutos. Na hora de servir vou tirar a tampa para gratinar por cima.
Esta receita é do livro da Patrícia Wells com o chef francês Joel Robuchon. Ela tem a vida que eu pedi a Deus. Mora em Paris e na Provence. O livro dela sobre a cozinha da Provence é ótimo. Mas este com o Joel Robuchon é o melhor.
Aprendi a cozinhar em três livros: o da Julia Child, recomendado por Nelita Leclery, este da Patrícia Wells e o de cozinha italiana da Marcella Hazan, ambos recomendados por Michelle Scheinkman. Com as técnicas que aprendi nesses três livros, que não são só de receitas, e sim manuais detalhados que ensinam tudo, passei a adaptar a comida do Brasil. Os livros de culinária brasileiros que eu tenho não ensinam nada, supõem que a pessoa já saiba tudo. Então pra que livro? O jeito foi aprender a cozinhar para depois reinventar do meu jeito os pratos brasileiros.
Thursday, October 27, 2005
Anna Maria leu no Sintonia Fina do Nelson Mota e me deu o toque: Victoria Abril, atriz de três filmes de Almodóvar (Átame, Tacones Lejanos e Kika) que vive em Paris e trabalha no cinema francês, resolveu virar cantora e gravou um disco de música brasileira, Putcheros do Brasil.
Que diabos quer dizer putcheros? Achei um monte de matérias publicadas nos jornais brasileiros sobre esse disco e fiquei sabendo que a atriz vai ao Brasil em dezembro para uma tournée de lançamento do CD, mas nenhum dos coleguinhas se deu ao trabalho de descobrir o que quer dizer putcheros. Que falta de curiosidade...
Deu um certo trabalho mas acabei aprendendo que putchero não existe, é palavra inventada para o título deste CD. Soa como puchero, que quer dizer "beicinho". Hacer puchero é "fazer beicinho" como criança manhosa que ameaça chorar - daí a lágrima na capa do disco.
Victoria explica em entrevistas que para cantar Bossa Nova basta fazer beicinho e ter um fio de voz. Ela pode ter um beicinho adorável, mas pela amostra que achei, beicinho só não basta. É engraçadinha, mas daí a dizer que canta Bossa Nova... Só que o marketing dela é tão competente que o disco já está nas paradas de sucesso da Europa e é um dos mais vendidos na França.
Não é à toa que destacaram EROS em vermelho no título Putcheros. Afinal, aos 46 anos Victoria continua sendo uma das atrizes com mais sex appeal no cinema europeu. Segundo Victoria, ela acrescentou o t para criar a palavra putchero de modo a juntar "putch, que é a idéia de um golpe rítmico, e eros, que é o amor". É duro.
Um crítico espanhol que ouviu o disco, o que os colegas brasileiros que enaltecem o CD de Victoria parecem não ter achado necessário, definiu bem: producción basura, produção lixo.
So nice (versão em inglês de Samba de Verão de Marcos e Paulo Sérgio Valle, com trechos num português incompreensível) e, pasmem, Águas de Março (em ritmo de flamenco, duo com a cantora guineense Concha Buika). É dose.
O mais triste é que a maravilhosa Rosinha Passos gravou duas faixas do CD em duo com Victoria. Para quem não conhece Rosa Passos, esta sim a maior cantora de Bossa Nova do momento, aí vai uma pequena seleção para lavar os ouvidos depois de ouvir o beicinho de Victoria.
Rosa Passos:
Chega de saudade
Curare
Ilusão à toa
Wednesday, October 26, 2005
Mais uma idéia do Ernesto: contar aqui no blog minhas experiências na cozinha.
Em homenagem a Cristina Zahar, de passagem por aqui, reuni os amigos para um gumbo - e assim também lembramos a querida e tão maltratada New Orleans.
Quem tiver paciência para ler sobre a preparação do gumbo, clique aqui.
E para ouvir, do maior de tantos grandes músicos que nasceram em New Orleans, Louis Armstrong, com Ella Fitzgerald, gravações geniais de I Got Plenty o' Nuttin, It Ain't Necessarily So, Oh Bess, Where's my Bess? e Summertime, de George e Ira Gershwin.
Tuesday, October 25, 2005
Devo a Ernesto Soto ter-me chamado a atenção para o pintor americano Winslow Homer (1836-1910). Há duas grandes exposições da obra dele, uma em Washington, na National Gallery, outra num pequeno museu maravilhoso, o Clark Art Institute em Williamstown, nas montanhas dos Berkshires, oeste de Massachussets, a três horas de New York, um belíssimo passeio. As duas exposições vão até janeiro.
A revista New Yorker desta semana traz um artigo sobre Homer (eu achava que o H era mudo mas errei, é aspirado mesmo). E há um website com 460 trabalhos do artista.
Mais Winslow Homer aqui.
Saturday, October 22, 2005
Do livro O Ano do Pensamento Mágico, de Joan Didion (pronuncia-se DAI-dion), sobre a morte do marido, o escritor John Gregory Dunne, em dezembro de 2003. A tradução de grief como a dor da perda me foi sugerida por Sérgio Flaksman. É o que mais se aproxima do sentido em inglês.
"A dor da perda, quando vem, não é nada do que esperávamos que fosse. Não foi o que eu senti quando meus pais morreram. (...) A dor da perda é diferente. A dor da perda não tem distância. A dor da perda vem em ondas, paroxismos, apreensões súbitas que enfraquecem os joelhos e cegam os olhos e obliteram o cotidiano da vida. (...) A dor da perda é um lugar que nenhum de nós conhece até chegarmos lá. (...) Nem podemos saber antecipadamente (e aqui está o cerne da diferença entre a dor da perda como o imaginamos e a dor da perda como realmente é) a infindável ausência que se segue, o vazio, o oposto do sentido, a implacável sucessão de momentos durante os quais confrontamos a experiência da própria falta de sentido".
Friday, October 21, 2005
Abriu hoje na Neue Gallerie de New York uma retrospectiva do austríaco Egon Schiele. Imperdível.
Schiele morreu de gripe espanhola em 1918 aos 28 anos. Vivendo na Viena de Freud, Schiele foi um transgressor desde a adolescência, com uma história de incesto com a irmã mais nova.
Aprendeu desenho e pintura com Gustav Klimt.
Desenhava meninas em poses eróticas e vendia os desenhos para colecionadores de pornografia. Foi preso por isso, em 1912. O juiz queimou um dos desenhos de Schiele no tribunal e o condenou a três semanas de prisão.
A figura dele era exatamente como se vê nos autorretratos, alto, magérrimo, ossudo, extremidades enormes e um rosto permanentemente crispado.
Em 1918, Schiele começou a ser reconhecido e festejado como o maior artista austríaco da nova geração. Durou pouco. A mulher dele, grávida, morreu de gripe. Schiele morreu três dias depois.
Mais Egon Schiele aqui.
Thursday, October 20, 2005
Trecho de um texto de Umberto Eco sobre James Joyce (em inglês: A Portrait of the Artist as Bachelor) publicado na coletânea On Literature. O Livro de Kells é um manuscrito irlandês iluminado do século IX.
"O Livro de Kells é uma rede florida de formas animais entrelaçadas e estilizadas, de pequenas figuras de monos entre um labirinto de folhagem cobrindo página após página, como se estivesse sempre repetindo os mesmos motivos visuais numa tapeçaria onde - na realidade - cada linha, cada corimbo, representa uma invenção diferente. Tem uma complexidade de formas espirais que vagueiam deliberadamente desatentas a qualquer regra de simetria disciplinada, uma sinfonia de cores delicadas de rosa a amarelo alaranjado, de amarelo limão a vermelho arroxeado. Vemos quadrúpedes, pássaros, galgos brincando com um bico de ganso, figuras humanóides inimagináveis retorcidas como um atleta a cavalo que se contorce com a cabeça entre os joelhos até formar uma letra inicial, figuras tão maleáveis e flexíveis quanto elásticos inseridas entre um emaranhado de linhas entrelaçadas, enfiando as cabeças entre decorações abstratas, se enrolando em torno de letras e se insinuando entre linhas. Enquanto olhamos, a página nunca fica parada, mas parece criar sua própria vida: não há pontos de referência, tudo está misturado com tudo. O Livro de Kells é o produto de uma alucinação sóbria que não precisa de mescalina ou LSD para criar seus abismos, porque representa não o delírio de uma só mente mas o delírio de uma cultura inteira em diálogo consigo mesma, citando outros Evangelhos, outras letras iluminadas, outras histórias.
É a vertigem lúcida de uma língua que está tentando redifinir o mundo enquanto se redefine em pleno conhecimento de que, numa era em que isso ainda é incerto, a chave para a revelação do mundo pode ser encontrada não na linha reta mas só no labirinto.
Não é portanto por acidente que tudo isso inspirou Finnegans Wake quando Joyce tentou criar um livro que representasse uma imagem do universo e uma obra escrita para um "leitor ideal sofrendo de uma ideal insônia".
O que, então, o Livro de Kells representa? O antigo manuscrito nos fala de um mundo feito de caminhos que se bifurcam em direções opostas, de aventuras da mente e da imaginação que não podem ser descritas. É uma estutura em que cada ponto pode ser conectado a qualquer outro ponto, onde não há pontos ou posições mas apenas linhas que conectam, cada uma das quais pode ser interrompida a qualquer momento porque recomeçará instantaneamente e seguirá a mesma direção. Esta estrutura não tem centro nem periferia. O Livro de Kells é um labirinto. Por isso conseguiu tornar-se na mente excitada de Joyce o modelo daquele livro infinito ainda a ser escrito, para ser lido apenas por um leitor ideal com uma ideal insônia.
Ao mesmo tempo o Livro de Kells (com seu descendente, Finnegans Wake) representa o modelo da linguagem humana e, talvez, o modelo do mundo em que vivemos. Talvez estejamos vivendo dentro de um Livro de Kells, enquanto pensamos estar vivendo dentro da Enciclopédia de Diderot. Tanto o Livro de Kells quanto Finnegans Wake são a melhor imagem do universo que a ciência contemporânea nos apresenta. São o modelo de um universo em expansão, talvez finito mas ilimitado, ponto de partida para perguntas infinitas. São livros que nos permitem sentirmo-nos como homens e mulheres do nosso tempo, embora estejamos navegando no mesmo mar perigoso que levou São Brendan a buscar a Ilha Perdida da qual fala cada página do Livro de Kells, ao nos convidar e inspirar a continuarmos nossa busca para finalmente expressar perfeitamente o mundo imperfeito em que vivemos.
Jim, o bacharel, não era de fato incompleto, porque ele vira, embora vagamente, qual era o seu dever e o que ele tinha que entender - que a ambiguidade das nossas línguas, a imperfeição natural dos nossos idiomas, representa não a doença pós-Babélica da qual a humanidade tem que se recuperar, e sim a única oportunidade que Deus deu a Adão, o animal falante. Entender que as línguas humanas são imperfeitas mas ao mesmo tempo capazes de trazer essa forma suprema de imperfeição que chamamos poesia representa a única conclusão de toda busca da perfeição. Babel não foi um acidente, temos vivido na Torre de Babel desde o início. O primeiro diálogo entre Deus e Adão pode bem ter ocorrido em finneganian e é só voltando a Babel, e pegando a única oportunidade que temos, que podemos encontrar a paz e enfrentar o destino da raça humana".
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