Thursday, October 20, 2005
Trecho de um texto de Umberto Eco sobre James Joyce (em inglês: A Portrait of the Artist as Bachelor) publicado na coletânea On Literature. O Livro de Kells é um manuscrito irlandês iluminado do século IX.
"O Livro de Kells é uma rede florida de formas animais entrelaçadas e estilizadas, de pequenas figuras de monos entre um labirinto de folhagem cobrindo página após página, como se estivesse sempre repetindo os mesmos motivos visuais numa tapeçaria onde - na realidade - cada linha, cada corimbo, representa uma invenção diferente. Tem uma complexidade de formas espirais que vagueiam deliberadamente desatentas a qualquer regra de simetria disciplinada, uma sinfonia de cores delicadas de rosa a amarelo alaranjado, de amarelo limão a vermelho arroxeado. Vemos quadrúpedes, pássaros, galgos brincando com um bico de ganso, figuras humanóides inimagináveis retorcidas como um atleta a cavalo que se contorce com a cabeça entre os joelhos até formar uma letra inicial, figuras tão maleáveis e flexíveis quanto elásticos inseridas entre um emaranhado de linhas entrelaçadas, enfiando as cabeças entre decorações abstratas, se enrolando em torno de letras e se insinuando entre linhas. Enquanto olhamos, a página nunca fica parada, mas parece criar sua própria vida: não há pontos de referência, tudo está misturado com tudo. O Livro de Kells é o produto de uma alucinação sóbria que não precisa de mescalina ou LSD para criar seus abismos, porque representa não o delírio de uma só mente mas o delírio de uma cultura inteira em diálogo consigo mesma, citando outros Evangelhos, outras letras iluminadas, outras histórias.
É a vertigem lúcida de uma língua que está tentando redifinir o mundo enquanto se redefine em pleno conhecimento de que, numa era em que isso ainda é incerto, a chave para a revelação do mundo pode ser encontrada não na linha reta mas só no labirinto.
Não é portanto por acidente que tudo isso inspirou Finnegans Wake quando Joyce tentou criar um livro que representasse uma imagem do universo e uma obra escrita para um "leitor ideal sofrendo de uma ideal insônia".
O que, então, o Livro de Kells representa? O antigo manuscrito nos fala de um mundo feito de caminhos que se bifurcam em direções opostas, de aventuras da mente e da imaginação que não podem ser descritas. É uma estutura em que cada ponto pode ser conectado a qualquer outro ponto, onde não há pontos ou posições mas apenas linhas que conectam, cada uma das quais pode ser interrompida a qualquer momento porque recomeçará instantaneamente e seguirá a mesma direção. Esta estrutura não tem centro nem periferia. O Livro de Kells é um labirinto. Por isso conseguiu tornar-se na mente excitada de Joyce o modelo daquele livro infinito ainda a ser escrito, para ser lido apenas por um leitor ideal com uma ideal insônia.
Ao mesmo tempo o Livro de Kells (com seu descendente, Finnegans Wake) representa o modelo da linguagem humana e, talvez, o modelo do mundo em que vivemos. Talvez estejamos vivendo dentro de um Livro de Kells, enquanto pensamos estar vivendo dentro da Enciclopédia de Diderot. Tanto o Livro de Kells quanto Finnegans Wake são a melhor imagem do universo que a ciência contemporânea nos apresenta. São o modelo de um universo em expansão, talvez finito mas ilimitado, ponto de partida para perguntas infinitas. São livros que nos permitem sentirmo-nos como homens e mulheres do nosso tempo, embora estejamos navegando no mesmo mar perigoso que levou São Brendan a buscar a Ilha Perdida da qual fala cada página do Livro de Kells, ao nos convidar e inspirar a continuarmos nossa busca para finalmente expressar perfeitamente o mundo imperfeito em que vivemos.
Jim, o bacharel, não era de fato incompleto, porque ele vira, embora vagamente, qual era o seu dever e o que ele tinha que entender - que a ambiguidade das nossas línguas, a imperfeição natural dos nossos idiomas, representa não a doença pós-Babélica da qual a humanidade tem que se recuperar, e sim a única oportunidade que Deus deu a Adão, o animal falante. Entender que as línguas humanas são imperfeitas mas ao mesmo tempo capazes de trazer essa forma suprema de imperfeição que chamamos poesia representa a única conclusão de toda busca da perfeição. Babel não foi um acidente, temos vivido na Torre de Babel desde o início. O primeiro diálogo entre Deus e Adão pode bem ter ocorrido em finneganian e é só voltando a Babel, e pegando a única oportunidade que temos, que podemos encontrar a paz e enfrentar o destino da raça humana".
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1 comment:
Eu quero o Livro de Kells. Nossa Jorge! Quanta coisa incrível neste Blog. Eu poderia passar o dia inteiro aqui.
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