Friday, October 14, 2005
Gelo derretido dá lucro
Na minha ingenuidade, eu achava que o aquecimento global da atmosfera seria um desastre para todos: inundação das áreas costeiras (uma Nova Orleãs elevada a n), secas e enchentes sem precedentes (exceto o dilúvio bíblico), destruição de espécies, um legado devastador para as futuras gerações.
Mas leio esta semana no New York Times que o derretimento do gelo que cobre o Ártico, já iniciado, é visto como o "lado positivo" do aquecimento global. A capa de gelo está recuando a cada verão. Em 2070 só cobrirá o Pólo Norte propriamente dito. Isso é sinônimo de lucro estupendo para companhias de petróleo e gás natural, navegação, pesca, e outras que vão poder botar as mãos nas riquezas naturais antes inacessíveis por causa do gelo.
O derretimento do gelo nos dois pólos vai elevar os mares e inundar cidades costeiras, mas esse efeito do aquecimento global pode demorar a acontecer. Muito antes disso, a abertura do Ártico à navegação e exploração de recursos naturais trará ganhos excepcionais, a curto prazo. Segundo o serviço de pesquisa geológica dos Estados Unidos, um quarto das reservas ainda não descobertas de petróleo e gás está no Ártico.
Se isso é novidade para mim, certamente não o é para os interessados. Fico pensando se não será esse um dos motivos para o governo Bush ignorar o aquecimento global e rasgar o acordo de Kyoto. Afinal a Casa Branca é hoje um fantoche do setor energético americano, que ditou a lei de energia recentemente aprovada pelo Congresso. E um dos projetos de Bush é abrir a área preservada do Alasca à exploração de petróleo. Somando dois mais dois, é óbvio que o derretimento do Ártico oferece às companhias de petróleo e gás novas áreas, ainda maiores. O Ártico é cinco vezes maior que o mar Mediterrâneo. Se aquecimento global = lucro, por que combatê-lo?
Teoria da conspiração? Pode ser. Afinal a oposição a Kyoto nos Estados Unidos também vem das empresas que exploram o carvão e financiam Bush & Cia. Estas já estão ganhando com o relaxamento das regras que limitavam a poluição do ar, um ganho imediato, enquanto a exploração do Ártico é para as próximas décadas. Mas não deixa de ser inquietante saber que o aquecimento global traz mais lucros para o setor energético.
Claro que não só os americanos têm a ganhar com o derretimento do Pólo Norte. A Rússia e a Noruega já estão extraindo gás natural em larga escala do mar de Barents. A Noruega é hoje o maior exportador de petróleo do mundo, depois da Arábia Saudita e da Rússia, e a abertura do Ártico só vai aumentar a riqueza dessa pequena e próspera monarquia.
O Canadá aliou-se à Rússia para abrir rotas de navegação graças ao recuo do gelo no verão, com vistas ao transporte marítimo entre os portos de Murmansk, na Rússia, e Churchill, no Canadá, uma viagem de apenas oito dias entre o norte da Eurásia e a América do Norte, já batizada de a Ponte do Ártico.
Mais adiante, quando o derretimento aumentar, será finalmente aberta a mítica Passagem do Noroeste, que tantos exploradores buscaram em vão, ligando o Ártico ao Pacífico pelo estreito de Bering, entre o Alasca e a Sibéria. Com isso, a viagem por mar de Londres a Tóquio, que hoje percorre 24 mil km passando pelo canal do Panamá, será reduzida a apenas 13 600 km, pelo estreito de Bering. Os quebra-gelo serão coisa do passado, mas em compensação o derretimento vai espalhar um número enorme de icebergs pelos mares do Norte. Titanic à vista...
Para a pesca, o derretimento está trazendo lucros, com o acesso dos pesqueiros a águas antes inacessíveis. Espécies marinhas e fluviais já têm seus habitats modificados, algumas sendo extintas e outras, como o salmão, proliferando, promessa de muito sushi. Já os Inuit (os esquimós), que são 150 mil dos 4 milhões de habitantes da região do círculo polar ártico, vêm seu modo de vida ameaçado pelo recuo do gelo e o desaparecimento de espécies que antes caçavam.
Como não poderia deixar de ser, a abertura do Ártico mexe com a geopolítica. Os cinco países árticos, Rússia, Canadá, Estados Unidos, Noruega e Dinamarca, preparam-se para a divisão do mar em cinco fatias, de acordo com o tamanho de seu litoral, com a Rússia à frente e a Dinamarca na rabeira.
A divisão terá que ser regida pelo Tratado do Mar e arbitrada por uma comissão da ONU. Há vários critérios em jogo, e as negociaçõers prometem ser muito complicadas. O maior complicador é que a única superpotência, diretamente interessada, não ratificou o tratado nem pretende fazê-lo. Portanto, a rigor Washington não teria que se curvar à decisão da ONU. Isso vai dar rolo.
Os russos já se adiantaram, mandando um navio de pesquisa ao Pólo Norte em agosto, a primeira embarcação a atingir o polo sem precisar de quebra-gelo, sinal de que o derretimento está mesmo muito avançado.
Quem, como eu, achava que o Pólo Norte estava a salvo dos tentáculos globais, também acredita no mais famoso morador do pólo, Papai Noel.
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